Amendoeiras pelas ruas
Passei toda minha infância numa cidade pequena do interior da Bahia e ia todos os dias caminhando até a escola. Íamos todos do bairro em bando no mesmo horário, várias crianças. Depois dos 6 anos podíamos ir desacompanhadas, não tinha perigo e já conhecíamos bem o caminho, afinal éramos guiados pelas amendoeiras em linha reta por toda a avenida, depois uma curva à esquerda outra logo mais à direita e lá estavam outras duas amendoeiras numa praça pequenina sinalizando que havíamos chegado. De um lado e de outro da praça estavam as duas maiores escolas da cidade: o Educandário e a Cinderela.
Então todas as manhãs sentíamos o cheiro doce e gostoso de amêndoas a caminho da escola. Quando a chuva chegava de repente e nos pegava desprevenidos no meio do caminho abrigávamo-nos rapidamente sob uma amendoeira, ficávamos juntos quase agarrados ao tronco porque a amendoeira tem os galhos meio retorcidos e espalhados que não cobrem muito bem, mas não reclamávamos por causa de uma gota e outra que sempre passava e ríamos da vã tentativa de chegarmos secos.
Havia dias em que parávamos pelo caminho de volta da escola pra colher amêndoas. Se maduras íamos mordendo sem cerimônia, ou ao menos pensar em lavar, e isso normalmente só acontecia nas sextas porque com certeza os uniformes chegariam manchados em casa e durante a semana a probabilidade de apanhar por isso era enorme, na sexta tudo bem a roupa já ia direto pro cesto ou pra pia de qualquer jeito, com sorte a mãe nem iria ver. E quando as amêndoas estavam secas as catávamos do chão como coletores primitivos e já no passeio da esquina de casa apanhávamos uma pedra qualquer e começávamos a quebrar uma a uma pra retirar o “coquinho” de dentro. Era uma momento de comunhão, nossa ceia sagrada, e não importava o que cada um tinha merendado naquele dia, ali éramos todos iguais, todos irmãos, porém de mães diferentes que chegavam uma à uma gritando para que parássemos de comer aquilo e fôssemos almoçar.
Adulta e vivendo noutra cidade, com tantos cheiros estranhos que não somos capazes de reconhecer nenhum, fui surpreendida há alguns dias com o perfume da minha infância, o doce cheiro de amêndoas. Lá estava eu, parada por alguns momentos sob a sombra de uma amendoeira, olhei para o outro lado e constatei que há ali um grande colégio e fui transportada velozmente aos meus 6 anos de idade, talvez um pouco mais... o trânsito seguiu e perdi o rastro do perfume, mas agora sempre que passo por aquele entroncamento sorrio pro passado.
Hoje depois de algum tempo revisitei a cidade de minha infância e embebida dessa saudade refiz à pé o caminho de casa para a escola ida e volta.
Não há mais amendoeiras!
Não sobrou nenhuma... me senti enlutada.
Pensei no porquê foram retiradas, o que nelas incomodaram o progresso? O perfume tornou-se doce demais para alguém? A sombra imperfeita? Será que foram os galhos feios e retorcidos? O tapete bonito de folhas no chão? Será que foram as manchas nos uniformes das crianças?
Parece mais racional que tenham sido as raízes grossas e firmes, elas devem ter se avolumado com o tempo e a minha geração não gosta de raízes, se incomoda com tradições...
Sentei na esquina de casa e ainda pensando sobre o extermínio das amendoeiras, me lembrei da canção na voz de Maria Bethânia perguntando: “Depois de ter você, pra quê amendoeiras pelas ruas? Pra que servem as ruas?”
A paixão é tão intensa que faz tudo o mais parecer sem sentido, sem significado, inclusive “Pra quê querer saber que horas são?”
Como eu amei aquelas amendoeiras!
Penso agora que o ódio e a paixão são iguais em força,
o ódio conseguiu derrubar as minhas amendoeiras,
alguém não as compreendia,
alguém não foi capaz de amá-las,
o ódio é assim mesmo, não vê o sentido das coisas,
não busca os significados, não vê beleza, não sente perfumes... o ódio é um tipo terrível de paixão.
Um soluço por prender o choro, um “ai!” preso na garganta, por meu passado, por essa geração que não se encontra mais nos passeios pra retirar “coquinho” das amêndoas, mas se encontra nas redes sociais pra declarar o seu ódio. Ódio que se tornou parte das afinidades das pessoas, um novo conector entre os homens:
- “odeio isso!”
- “eu também, que legal!”
- “gostei de você.”
E o ódio não exige maiores explicações, ele não requer conhecimento, se autojustifica na ignorância e se satisfaz com isso, se enrijece e cria nós mais resistentes do que os das raízes das amendoeiras, o ódio sim destrói fundações, demole silenciosamente (ou aos berros, não sei, disso não quero conhecer).
Ai de mim que perdi minhas amendoeiras! Ai de quem como eu não consegue deixar de amar e de ver sentido nas coisas!
Se as raízes das amendoeiras eram tão terríveis, quando arrancaremos as tão mais terríveis raízes do ódio que crescem por todos os lados?