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Uma notícia inesperada como a morte de um artista famoso pode ser o momento certo para propagandear opiniões e valores. Caminhando sempre na contramão da unanimidade, associamos ao músico de renome internacional à intenção dos mass mídia de estimular o povo a destacar o Brasil, como lugar de destaque no cenário mundial.

Em 06 de julho de 2019 as televisões e os rádios noticiavam o dia inteiro o falecimento do “pai da bossa nova”—João Gilberto aos 88 anos. Sem desmerecer a homenagem a um dos intérpretes da nossa música era evidente que se forjava uma falsa popularidade, pois o cantor estava há muito tempo ausente das turnês artísticas. Além disso, sempre esteve voltado para um público elitizado. Teve seu auge de sucesso nas décadas de 1950 a 1980 e foi viver no exterior durante vinte anos, voltando a residir no país após 1979. Boa parte de seu repertório era tributário de sua produção dos anos que viveu fora do país.

Estamos em uma conjuntura de mudança das nossas relações internacionais em que os contatos comerciais e culturais entre os países em desenvolvimento foram substituídos pela aproximação aos países do Primeiro Mundo. A morte de J.G veio a calhar, pois foi um músico de projeção internacional além de radicado nos USA.

Em um país de origem escravocrata em que só algumas profissões são consideradas “nobres” e, o trabalho manual tem o estigma do trabalho escravo, há por assim dizer um desprezo pelo “trabalho em si”, valorizando-se o diploma do ensino superior ou as mamatas provenientes das profissões das elites locupletadas nos serviços públicos. Enfatiza-se o sucesso em prejuízo do conhecimento e da competência.

Em 1964 João Gilberto gravou um LP com Stan Getz e ajudou a divulgar a canção Garota de Ipanema uma composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Quase todos os sucessos do artista no exterior foram sustentados por Tom e Vinícius, João Donato, Aloysio de Oliveira, Newton Mendonça, Dolores Duran e outros compositores ligados à MPB. Entretanto, com sua morte virou a estrela guia da propagação da música brasileira, alçado como mentor do surgimento da bossa-nova com sua peculiar técnica de “batida” no violão sintetizando a batucada do samba que se funde com o seu canto.

Os depoimentos de amigos, parentes e artistas foram unânimes em afirmar que J.G foi “a voz e o violão que puseram a bossa-nova no mapa e que sensibilizou ouvidos pelo mundo a fora”. Uma amiga em viagem a Nova York, em 1997, foi a um night club no Harlem e lá encontrou músicos negros que cantavam o “Samba de uma Nota Só”, e sabiam que era de Tom Jobim. Em momento nenhum foi eclipsado pelo “lendário” João Gilberto. Afinal quem era mais conhecido nos “states”?

Há algo de estranho no incensamento em torno de João Gilberto, pois Tom Jobim não só compôs Garota de Ipanema que o “pai da bossa nova” cantou como nesta ocasião tocou piano com Stan Getz e, chegou a gravar em parceria com Frank Sinatra. Cada

vez mais se confirma a hipótese do uso da morte recente de João Gilberto como um símbolo da “nova era” de aproximação Brasil-EUA. Tom Jobim morreu em 08 de dezembro de 1994 em Nova York e foi um dos criadores da bossa-nova. Unanimidade em termos de qualidade e sofisticação musical: cantor, pianista, maestro e compositor. Além de seu domínio musical tinha “carisma” e contato com as massas populares; em parceria com Chico Buarque compôs em homenagem à Estação Primeira de Mangueira. Faz parte do imaginário popular embora seja um compositor requintado. As mortes recentes de Beth Carvalho e de Dona Ivone Lara, cantoras expressivas e de maior penetração de massa, jamais iriam ser alvo de enaltecimento da mídia com a intensidade do foco em João Gilberto. Eram mulheres mais politizadas e conhecidas do povão. Não foram veladas no Teatro Municipal, que reservou seu espaço para homenagear Bibi Ferreira, a grande dama do Teatro no Brasil.

Há muitos anos atrás tivemos a famosa Carmem Miranda, que foi cantora e artista de cinema no Brasil e nos Estados Unidos. Até falavam por aqui, nos idos de 1940, que a Pequena Notável havia se americanizado. Mas, ao contrário do baiano de Juazeiro que adaptou o samba ao ritmo do jazz,Carmem Miranda levou aos Estados Unidos a cultura brasileira com a sua personificação de baiana e seus balangandãs. Faz muito tempo que a música brasileira é conhecida dos ianques. Mas isso tudo é secundário, pois o que importa é reativar o “mimetismo”, em um país que tem a necessidade de cultuar “mitos” graças à ausência de memória de sua rica tradição cultural. No aqui e agora, a mídia acentuou o orgulho dos brasileiros diante da performance artística do “criador” da bossa-nova com o recorte da “americanização”do governo iniciado em janeiro de 2019.

No cenário montado para o seu velório havia alguns populares misturados a parentes e profissionais da música que passavam informações e boatos relativos ao defunto famoso. O disse-me- disse feito por anônimos dizia que o principal motivo de sua morte foi a disputa por seu espólio, feito por sua filha Bebel, que movia um processo de interdição do pai por dividas acumuladas ao longo de sua doença. Houve até um princípio de bate-boca entre duas mulheres em que uma delas falava a outra que João Gilberto era conhecido como arrogante e antipopular. A disputa entre familiares-três filhos e sua viúva vai continuar através da batalha judicial contra a gravadora Universal Music, que está sendo obrigada a devolver os royalties que deixou de pagar desde 1964, além de danos morais.

O músico era conhecido por seu temperamento difícil e estava há décadas recluso, nem dava entrevista e não recebia ninguém em casa. Esquisitão, refinado, esnobe. Branco, homem branco. Há compositores geniais como o falecido Luís Melodia e Jorge Ben que passou uma temporada nos USA e voltou como Jorge Benjor. Os dois com origem popular têm composições musicais complexas e de alto nível de elaboração. Conceituados pela elite e pelo povo. Mas negros, homens negros.

João Gilberto ao longo de 61 anos de carreira compõe pouco mais de dez músicas, sendo que as canções que o consagraram no mundo são de outros compositores, Chega de Saudade e Garota de Ipanema, esta última é a canção mais conhecida no mundo. Não resta dúvida que João Gilberto foi inovador com sua batida de violão, mas foi um “gigante de pés de barro”, um brilhante violonista e um cantor sem borogodó. Que o “maior gênio da música brasileira” me perdoe, mas sou muito mais Tom Jobim.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 13/08/2019
Código do texto: T6719533
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