Primeiro Encontro com a Beleza

Viver é experimentar a dádiva da vida. Mas, filosofar é preciso, para complementar essa experiência com a apropriação de um dos dois maiores fitos do viver: a sabedoria. O outro, o amor.

Dentre os mais diversos experimentos em nossa vida, certamente, extasiaram-nos os encontros com a beleza, em especial o primeiro deles.

Essas reflexões se originaram ao sermos agraciados com encontro de colega dos tempos de adolescência e de mesma turma do colégio estadual. Como em quase todos esses encontros, a conversa é jogada como bumerangue na esperança de que traga lembranças.

E, como geralmente têm-se êxito, o bumerangue trouxe-nos lembrança de colega de nome diferente, o Heranildo. Não somente o nome era diferente. Hoje, entendíamos “o ser diferente” de Heranildo: inteligência raríssima, sensibilidade reprimida, naquela época, e espécie de ser tomado de solidão, um “morador de rua” no aspecto emocional.

Meu colega de nome diferente, tal como Heranildo, o Lindonardo, em falar ansioso, afirmou ter grande gratidão a Heranildo, pois fora quem o apresentara à beleza. Ansiedade justificada, quando complementou que jamais tivera oportunidade de expressar, ao mesmo, essa gratidão.

Sem ter a intenção, deixei-o mais ansioso em justificar sua gratidão ao interrompê-lo, pedindo que me esclarecesse sobre seu entendimento sobre beleza.

Sem conseguir mascarar contrariedade pela interrupção, Lindonardo, surpreendeu-me com sua erudição.

Numa abordagem simplória sobre beleza, encontrarás nos dicionários: essência daquilo que se apresenta com harmonia de proporções e perfeição de formas. Entretanto, de a afirmativa de Platão: “a beleza absoluta é o brilho ou esplendor da verdade”, passando pela de Aristóteles: ”a beleza reside em ordem, harmonia e grandeza”, Plotino: “é tudo que transparece no sensível e eleva a alma”.

Ao perceber que ele próprio aumentara a interrupção sofrida, concluiu: de todos os pensadores sobre a beleza o que mais meu entendimento se aproxima foi o de Kant: “o prazer estético baseia-se numa apreciação que não se refere diretamente ao objeto, mas à nossa subjetividade com relação ao mesmo. Apreciamos também tudo o que é desmedido, emocionante e assustador, como é caso de achar beleza na erupção de um vulcão, na potência de um furacão, na profundeza de um abismo.”

Sem deixar-me qualquer possibilidade de nova interrupção continuou: Deixe-me concluir com a lembrança que justifica minha gratidão ao Heranildo.

Pois bem, lembras que Heranildo desapareceu por quase quatro meses. Abandonou a cassa, a família, o colégio, colocou poucos pertences em alguma coisa semelhante às mochilas de hoje e chegou até a Guiana Francesa.

Apesar de esse retorno corresponder a dois meses e meio de ausência ás aulas, sua genialidade objetivou-se em aprovação sem qualquer segunda época e, pelo menos com relação a mim, em melhor classificação.

Sempre muito reservado, voltou com a sabedoria dos que experimentam a vida. Aliás, a razão de vivermos é experimentá-la. Sabedoria que permitiu Heranildo perceber meu total desinteresse e distanciamento de leituras. E, por desvelar-me como companheiro de solidão e emocionalmente, também, um “morador de rua”, privilegiou-me com atenção, como se fosse irmão bem mais velho.

Era final de outubro, dia quente. Ao sair do colégio Heranildo aproximou-se, mostrou-me fino livro com desenhos infantis na capa e, como togado fosse, sentenciou: “não deixa de ler, de dar-lhe a maior das atenções e de devolver”.

O gesto de Heranildo, sabedor de que o livro, como varinha mágica, despertaria, revelaria e faria irromper do mais profundo de nosso ser um êxtase com o “maravilhar-se com a beleza”.

Lindonardo transformara sua expressão ansiosa naquela de alívio, tal como pecador após ter cumprido a penitência.

Iria responder-lhe que não somente eu, mas julgava que todos os alunos, daquela época, lembravam do sumiço de Heranildo, quando Lindonardo complementou: agora entendes o porquê de ser partidário ao pensamento de Kant sobre beleza; o quanto de gratidão ao Heranildo por ter sido quem promoveu meu primeiro encontro e êxtase com a beleza; e de ter usado para aliviar esse débito.

Despedi-me recompensado por ter quitado o débito de Lindonardo e incomodado por turbilhão de lembranças, que me maravilhou, pelo êxtase do encontro com a beleza, a cujos agentes promovedores nunca lhes expressei gratidão.

Arre Lindonardo! Poderias ter-me poupado de ansiedade e culpa pela consciência da ingratidão...

J Coelho
Enviado por J Coelho em 13/08/2019
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