Pedido atendido

Após longos anos de frustração apareceu-me um anjo, ao anoitecer. Pairava no ar, saudou-me e disse que estava ali para me atender. Eu finalmente poderia tocar as peças que quisesse ao piano, mas teria de ser nas bases da minha própria proposta, tantas vezes balbuciada pelos meus lábios trêmulos e inundada pelas lágrimas que vertiam de meus olhos cansados.

Pego, assim, de supetão, nem sabia o que responder. O que eu gostaria de executar ao piano, como primeira escolha? Eram tantas as minhas primeiras escolhas. E qual fora, mesmo, minha proposta? Qual era a contrapartida? Nem conseguia me lembrar do meu nome, de tanta emoção.

O anjo me explicou que eu teria de escolher uma peça, estudar a partitura, mas que a absorção se daria num tempo incrivelmente inferior ao do método tradicional e que, ao estudar, tudo já estaria memorizado, sem necessidade de qualquer estudo adicional. Algo como, na medida em que eu fosse lendo a partitura, as notas se me seriam impressas nos dedos, com precisão única.

Lembrou-me da contrapartida: minha vida seria encurtada exatamente no mesmo número de horas que eu levaria, sem a intervenção do anjo, para conseguir executar essa mesma peça com perfeição técnica e memorizá-la.

O anjo notou que eu estava atônito e sem possibilidade de qualquer decisão responsável. Concedeu-me tempo para refletir e quando me sentisse pronto, eu deveria me recolher num local de resguardo e de lá invocá-lo com um sonoro “Ave Anjo”.

Recuperado do susto inicial, passei a avaliar essa insólita proposta. Num primeiro momento, a vaidade tomou conta de mim: finalmente poderia executar, com brilhantismo, a 1ª Balada de Chopin ou a 2ª Sonata de Rachmaninoff, ou todos os prelúdios e fugas do 1° volume de O Cravo Bem Temperado, de Bach, ou ainda os três movimentos do Gaspard de la Nuit, de Ravel, ou todos os estudos do opus 10 e do opus 25, de Chopin, ou ainda a sonata opus 111, de Beethoven, ou os Estudos Sinfônicos, de Schumann. Mas, há muito mais ...

No dia seguinte, pus-me de resguardo e invoquei a presença do anjo e, tal qual havia dito, apareceu-me, de imediato, pairando no ar. Disse-lhe que já havia elaborado uma primeira lista de peças e li o nome de cada uma delas. O anjo olhou-me perplexo e disparou que seria impossível, pois não haveria tempo computacional para honrar o pedido. Sugeriu que eu escolhesse uma peça apenas e desapareceu no ar.

Decepcionado comigo mesmo, conclui que eu não viveria o suficiente para estudar, por mim mesmo, todas essas peças até atingir o nível de perfeição técnica e de memorização e, portanto, não poderia oferecer um tempo de que eu não iria poder dispor. Mas como ele sabia o tempo que eu ainda teria pela frente? Como ele sabia que eu não me iria aplicar mais do que de costume para estudar as peças? E, uma vez estudadas e memorizadas as peças, quanto tempo me sobraria, para honrar a contrapartida e executar as peças? Esse anjo deu no que pensar ...

Lembrei-me do Dr. Fausto, de Goethe e do Pedrinho, da Reforma da Natureza, de Monteiro Lobato. Invoquei a presença do anjo novamente para lhe agradecer, mas que tudo deveria permanecer como está. A natureza é perfeita para comportar acréscimos meus. Amém!