A TRISTE PARTIDA DO MEU PAI EM MEIO A UMA REFERÊNCIA A LÁZARO

O relógio já devia marcar pouco mais de oito da noite. Mesmo o firmamento ainda um tanto nublado, a chuva havia cessado, ou melhor dizendo, chovera bem mais no momento em que eu deixara a rodoviária de Itaúna, que no decorrer de mais de uma hora e meia de viagem, em meio a uma incontável angústia permeada por dúvidas e apreensões. Afinal, nunca é fácil ou não é todo dia que se recebe uma notícia por telefone, vinda de outra cidade, sobre o acometimento de um enfarte envolvendo um de nossos entes queridos. Todavia, sem saber bem o motivo, à medida que o ônibus ia ficando cada vez mais perto da capital mineira, eu me sentia até mais tranquilo, como se uma voz, de certa forma, inexplicável, vinda do meu próprio interior, me confidenciasse, a todo o instante, que eu não deixasse de me agarrar com firmeza à esperança e otimismo de que tudo se resolveria rapidamente e de forma positiva.

E essa aparente tranquilidade pareceu enfim se consolidar, quando o ônibus finalmente parou quase em frente à portaria do prédio do hospital de Belo Horizonte, e eu desci com rapidez, mesmo portando em mãos, uma mochila negra menor onde eu levava algumas peças de roupa para o meu pai, que, com certeza, seriam de precisão e serventia. Enquanto, ainda em casa, eu preparava a mochila, pensava nos cuidados e zelo que ele possuía em relação a todos os seus pertences e objetos; sempre fora dessas pessoas sistemáticas e extremamente cuidadosas e zelosas com as coisas em geral e não admitia que mexessem em nada seu, a não ser, é claro, em situações extremas como naquela noite; o lado do seu guarda-roupa, por exemplo, fazia questão de manter o mais limpo e organizado possível. Aliás, eu podia afirmar que aquela fora a única vez na vida em que mexi diretamente nas suas roupas; a ocasião se fazia necessária e excepcional; desculpar-me-ia com ele, na primeira oportunidade, caso tivesse deixado algo fora do seu devido lugar ou em inconformidade com o seu pleno gosto e organização.

Chegando à portaria, logo vi sentadas e conversando, uma ao lado da outra, minha mãe e uma tia, única irmã do meu pai. Ao me deparar com as duas, pelos seus semblantes mais favoráveis, imaginei que a situação crítica se amenizara e que o pior havia ficado para trás. Mesmo assim, só consegui me alentar, de fato, após ouvir da boca de minha mãe, que haviam sim atravessado maus momentos e passado por um grande e terrível susto, mas já estava tudo se encaminhando da melhor maneira possível. Infelizmente, o meu pai fora mesmo acometido de um enfarte, o médico que o assistira, tivera de realizar um procedimento clínico interno, de emergência, a envolver desobstrução, chegando a afirmar que o seu caso era grave, ou com todas as letras, “gravíssimo”, de acordo com as palavras da minha mãe, mas que tudo faria para salvá-lo. “O Tacão tem uma saúde muito forte e nunca teve problema sério de coração”. Soube que o meu pai passaria toda a noite naquela instituição e, no outro dia, se tudo ocorresse dentro dos conformes, seria transferido imediatamente para o Hospital das Clínicas da Capital,

Enquanto a escutava, eu procurava acomodar a mochila que havia trazido, sobre uma cadeira vazia, ao lado, ao mesmo tempo que pude observar, pela primeira vez, o rosto, a fisionomia, a meu ver, um tanto sombria, fechada e sisuda do rapaz que controlava as visitações ou as entradas e saídas de pessoas do local, e não parava quieto, um minuto sequer. Tratava-se na verdade de um moço de estatura mediana, de feições, nem velhas, nem jovens; a princípio, sim, me pareceu um tanto rude e áspero no trato com as pessoas que o abordavam, sendo que a minha mãe, desde o início, não fora com as suas “fuças”, chegando até a tachá-lo depois de “sem educação”. Por outro lado, considerando as devidas exceções, sempre imaginei que ocorre de muitos profissionais que atuam na área da saúde, agirem dessa forma ou transmitirem essa penosa impressão, justamente pela responsabilidade das próprias funções que exercem ou em virtude de tudo o que presenciam, no seu dia a dia, ou em decorrência dos encargos imanentes aos próprios ossos do ofício. Nesse sentido, pelo menos em se tratando de comportamento ou perfil de personalidade desses profissionais, eu não consigo distinguir tão grandes diferenças assim entre um hospital público e um hospital privado ou conveniado, como era o caso daquele. O que distingue na verdade as duas formas de instituição é a qualidade de tratamento ofertada, ou o grau de atenção concedido; ou como o processo de assistência é dispensado ou não aos seus usuários e pacientes, assim como a disponibilidade ou não de leitos, materiais e equipamentos.

Fiquei por breves instantes, então, a observar o procedimento do tal rapaz, enquanto aguardava, ansioso, a chegada de minha irmã que se encontrava lá dentro com o meu pai, para que eu pudesse entrar e finalmente abraçá-lo como nunca, e que decerto, este aguardava, naquele momento, somente a minha chegada de Itaúna. A televisão na portaria se achava ligada e, por coincidência, anunciava na mesma noite, uma partida importante válida pela Copa Libertadores da América, envolvendo o time do Cruzeiro, o seu clube de coração, há muitos anos. Vim a saber depois, que dissera a um dos meus tios, também seu irmão, que havia estado lá, cerca de uma hora antes, mesmo ante toda aquela situação amarga envolvendo o ambiente hospitalar, ainda se sentia feliz por ter a oportunidade de estar ao lado dos seus familiares, ou das pessoas que mais amava na vida, incluindo também a mim, mas que eu ainda estava para chegar e não tardaria. Confesso que, a princípio, até estranhei, pois, se por um lado, não havia dúvida alguma acerca da veracidade tanto das suas palavras, quanto do seu amor por todos nós e de sua vulnerabilidade a sentimentos dessa natureza, por outro, ele tinha dificuldade em manifestá-los assim de uma maneira tão livre, aberta e espontânea.

Ao avistar minha irmã se aproximando, fui imediatamente em sua direção, procurando saber como estava nosso pai e em qual ala se encontrava, e como eu fazia para chegar até ele. Mesmo repetindo por duas vezes essa segunda pergunta, não obtive resposta; obviamente, nunca fui fadado a adivinhações, ainda mais, levando-se em conta que eu havia chegado somente há poucos instantes e jamais, nem em sonho, havia estado naquele hospital, portanto, totalmente ignorante de suas instalações e condições estruturais. Sem procurar engolir ou absorver essa pequena indelicadeza (para não dizer pouco caso) percorri, debalde, pelo menos por vários segundos, feito um verdadeiro pateta, o espaço interior, visando a sua busca. Acabei por deparar-me com o mesmo rapaz da frente, sempre com a sua atitude inquietante, e aproveitei para me informar. Respondeu-me de forma apressada, no entanto, sem mostrar rispidez, que não sabia e que eu me informasse com uma das enfermeiras disponíveis. A primeira, depois de examinar a lista de internos e ingressos, indicou com exatidão o lugar em que se achava. De fato, era muito perto da portaria, mas a dificuldade ocorreu, tendo em vista a significativa quantidade de leitos, cujos espaços, separados todos entre si por divisórias, se achavam numa boa proximidade.

Ao chegar-me junto dele, tive a chance de finalmente abraça-lo em seu leito, mas de um jeito longo e afetuoso, como nunca o havia abraçado antes, buscando, ao mesmo tempo, desfrutar-me, pelo menos um pouco, do seu pleno calor, ardente e paternal, como quase nunca conseguira sentir. Em curto lapso de tempo, lembrei-me de que foram raríssimas as oportunidades que tivemos, de ao menos, nos tocar com um pouco mais de profundidade, algo que, sinceramente me fazia falta, em demasia. Ficava sempre a cismar, principalmente ao me tornar um adulto; não que o meu pai não quisesse manifestar os seus devidos sentimentos por meio de um abraço mais cordial para comigo ou por meio de gestos paternais mais profundos e espontâneos, mas a verdade é que não conseguia. Como se uma força interior infalível, o impedisse sempre desses mínimos atos, mas tão importantes e significativos. Assim aproveitei aquele momento bastante singular, ao perceber que ele começou a manifestar um tímido, mas caloroso sorriso, para senti-lo verdadeiramente como um pai, em toda a sua extensão do nome e plenitude, nunca como um homem ou genitor omisso, distante ou carente de carinhos e afeto. Aquele mesmo homem que se encontrava deitado diante de mim, preso a um leito hospitalar, ligado a um aparelho monitor cardíaco, precisava naquele instante, acima de tudo, do meu apoio, da minha atitude, do meu pleno conforto. Ele, dessa forma, enquanto ainda conseguia externar um límpido sorriso entre os dentes alvos e bem cuidados, pôs-se assim a conversar melhor comigo, relatando alguns fatos e acontecimentos daquele mesmo dia e o que lhe sucedeu antes da internação. Confesso que, embora o entendesse com segurança, mal conseguia ouvi-lo; o simples fato de poder estar ali, naquele momento, já me bastava de tal forma, que já valia a felicidade íntima; diga-se de passagem, uma estranha felicidade que passou a me dominar. Aproveitei para dizer, também sorrindo, que havia trazido algumas de suas roupas necessárias, e que ele podia ficar tranquilo, que eu não havia “desarranjado” as suas coisas no guarda-roupa, tanto assim, o que o fez concordar, para depois silenciar. Se eu soubesse ou tivesse convicção de que, horas depois, ele não estaria mais diante de mim, com a oportunidade de, pelo menos mais uma vez, manifestar aquele mesmo sorriso cordial, também exposto no brilhante olhar, eu faria de tudo para permanecer ali, por mais tempo, junto dele. Se eu soubesse ainda que aquele abraço de há pouco, logo que eu cheguei, fosse o último, o derradeiro, em vida, eu o teria feito durar por mais tempo, com maior profundidade, mas o tempo...

O tempo é imprevisível e repleto de inevitáveis surpresas, tendo em vista os acontecimentos inesperados que cruzam nossos caminhos; da mesma forma que a vida em si nos surpreende com os seus implacáveis reveses. São várias as possibilidades em que vida e morte parecem não se situar em polos tão opostos, tão adversos assim, e se mostram tão próximas, tão vizinhas uma da outra, que até se intercruzam num só plano. Como compreender, em muitos momentos, esse jogo de antíteses? A partir de um determinado e desditoso instante que culminou na sua partida, pela triste madrugada, o meu pai não mais conseguiria conversar como antes, sentir e saborear o sabor da existência, como antes, abrir e fechar os olhos, de forma contínua, muito menos, ter a chance de manifestar, mais uma vez, um sorriso límpido no semblante ou no olhar.

Entrego-me à opção, pelo menos nesse momento, de não me ater aos fatos mais relevantes que se sucederam ante a sua inesperada partida, não por considerá-los tão forçosos e profundos, mas por não se fazerem necessários na ocasião. Igualmente, prefiro me privar das lembranças que me levam àquele médico, não o mesmo, de horas atrás, que nem sequer cheguei a conhecer pessoalmente, mas que conseguira, mediante toda a habilidade profissional, ao menos, proporcionar ao meu pai, mais algumas, (mas breves) contínuas horas de existência. Ou se em cada uma delas houvesse verdadeiramente as mãos e o afago de um Deus benevolente e onipotente. Aquele outro médico, o plantonista da madrugada, de olhar e sobrancelhas altamente sinistros, que afirmou ter feito “tudo o que podia, mas não houve jeito”, cujas feições, em dado instante, se fizeram tão lúgubres, escuras e funestas, a exemplo da própria madrugada.

Estranhamente, me invade a consciência, a imagem daquele mesmo rapaz inquieto da portaria, que antes, me passava a impressão de um comportamento, um tanto áspero e ríspido. Depois, com uma atitude tão díspar e inesperada, pela primeira vez, chegou-se de repente até a mim, no hospital, como a querer me confortar, em meio à manifestação de sentimentos, e de uma forma inusitada, começou a relatar um breve trecho de uma história, mas uma história muito antiga e distante, advinda do novo testamento, mas que se eternizou ao sabor da fé e da crença. Referia-se à morte e à ressurreição de um homem, sendo que as palavras vieram a me tocar bastante, embora menos ainda do que o tom com que as proferiu: “Quando Cristo chegou à Betânia, próximo a Jerusalém, Lázaro já estava morto e enterrado havia quatro dias. Então Marta, uma das suas duas irmãs, disse que se o Senhor tivesse estado antes por lá, ele não teria morrido, Mas Jesus afirmou que o irmão iria retornar, e disse: eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim, nunca jamais morrerá. E Lázaro simplesmente retornou graças à fé por parte de todos, graças à glória do Senhor; assim é o poder da ressurreição; assim é o poder divino do Espírito Santo ...”

E como não podia ser diferente, o tempo, a partir daí, continuou a transcorrer, por meio da passagem dos dias, meses, anos, seus verdadeiros súditos e, mesmo com todo o poder que lhe é conferido e por mais implacável que se mostre, ainda se situa como amigo do conformismo. Mas, em contrapartida, se acha longe de compreender o real significado de uma nostalgia.

Há quase dez anos, o meu pai fechava, de forma involuntária, os olhos para a existência terrena, a fim de se abrirem novamente para os mistérios da eternidade. E aquele moço de outrora, da portaria, decerto, continuaria, de maneira voluntária, a tentar abrir os olhos das pessoas mais inconformadas, por meio das suas amenas palavras de referência a Lázaro.

“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim, nunca jamais morrerá...”

Wagner Andrade
Enviado por Wagner Andrade em 11/08/2019
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