POETA GILBERTO PESSOA

A POEMIGRAÇÃO EM GILBERTO PESSOA

Nelson Marzullo Tangerini

Arrumando meus livros na manhã de ontem [9.8.2019], eis que encontro Poemigração, livro de poemas de meu amigo Carlos Gilberto Pessoa da Silva, mais conhecido como Gilberto Pessoa, com autógrafo do autor, que hoje não faz mais parte do mundo dos vivos, embora sua poesia se mantenha viva e atual.

Há muito gostaria de prestar uma homenagem ao amigo de boemia e desemprego, revelando seu trabalho como poeta e jornalista.

Sua poesia é de grande qualidade e isto se comprovou em três livros publicados por Gilberto Pessoa: Poesia, Poemigração e Desnorteado (nome sugerido pelo cronista que vos escreve).

Para mim, escreveu o poeta, numa noite estrelada, enluarada, talvez, em que o álcool e a poesia nos faziam sincera companhia, enquanto as musas zombavam de nossos versos:

“O poeta está apaixonada,

estar apaixonado já é bonito;

imaginem um poeta apaixonado”.

Respondi-lhe, porém, como de costume, com minha poesia cítrica e mordaz:

Gilberto Pessoa,

Gilberto pessoal,

Gilberto pessoal e intransferível.

Voz de um pássaro amazônico, aflito,

perdido entre selvas de pedra.

Gilberto Pessoa,

Gilberto pessoal,

Gilberto pessoal e intransferível.

Brasileiro, poeta, fodido que nem eu”.

Que musas são essas, poeta, que levam os poetas a buscar nas estrelas e na lua uma infinidade de palavras belas e adjetivos nem sempre verídicos?

Sua poesia social me transmite ainda hoje um desesperado alerta, e nos remete a um passado obscuro, sob as trevas de uma ditadura militar obtusa e sanguinária. Por outro lado, o Desnorteado poeta nos põe diante de um abismo, de onde vislumbramos, hoje, um futuro incerto e macabro neste curto verão da democracia.

Pessoa era leitor de outro Pessoa, o Fernando, de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Sonhávamos com o reconhecimento, em estar, um dia, entre os grandes poetas da literatura nacional e universal.

Estivemos na casa de Ferreira Gullar, em Copacabana, e fomos recebidos gentilmente pelo filho do poeta maranhense. Levávamos o livro Desnorteado, na esperança de que o autor do Poema Sujo fizesse um prefácio para ele. Gullar, talvez envolvido em outros projetos, recusou-se a fazer o prefácio e voltamos outro dia para pegar o livro. Saímos de lá sem mágoa, e Gilberto editou o livro mesmo assim, datilografado, com produção independente.

Calvário, poesia que hora publico aqui, nos faz lembrar, ainda que vagamente, os versos políticos de Castro Alves, em Navio Negreiro, que volta a singrar anos depois, as águas de nossa pátria mãe nada gentil:

Sangra estômago, arranha tuas paredes,

E provoca essa fome constante,

Pois assim mostrarás ao mundo

O protesto de um faminto brasileiro.

Caiam trevas da noite,

Ilumina-te cidade bóia-fria,

E assim mostrarás aos homens

As revoltas e os sequestros.

Arde na garganta, cachaça fácil,

E distancia cada vez mais

A comida operária sacrificada.

Cai claridão, solar ardente,

E abriga, cidade, sob teus tetos

Uma maioria assalariada,

Explorada e assaltada!

Cai chuva, tempestade, trovão,

Mas, por favor, deixa de pé

Os barracos das favelas e palafitas.

Espanta, trovoada, com eu poder,

Os abutres e ratos dirigentes da sociedade.

Vem até nós, criador, se existires,

E extingue os monarcas-caudilhos,

Os pivetes, os famintos...

Sou Gilberto,

Nasci em Belém,

Não quero e nem serei crucificado,

Posto que o mundo inteiro está na Calvário.

Gilberto Pessoa, que participou, comigo, Douglas Carrara e Sérgio Alves, entre tantos outros poetas, do movimento literário que fez história na Cinelândia, Centro do Rio, na década de 1980, nasceu em Belém do Pará, a 30 de maio de 1953, e faleceu em Seropédica, RJ, a 2 de julho de 2015.

Que a poesia independente e libertária deste pássaro amazônico aflito seja redescoberta e republicada, para o enriquecimento da literatura lusófona.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 10/08/2019
Reeditado em 25/10/2020
Código do texto: T6717327
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