Crônicas Médicas - Eu não sei lidar com a morte
Era uma tarde de terça-feira tão comum quanto qualquer tarde de um aluno de segundo semestre de medicina que inicia o processo de imersão dentro das Estratégias de Saúde da Família. Chegáramos todos os seis, às treze e trinta, muito animados, apesar de cansados devido à correria de final de semestre. Com jalecos e estetoscópio em mãos, a energia estava lá em cima para iniciarmos nossa segunda vivência dentro da ESF 06. Entramos, vestimos nosso uniforme e esperamos para que a professora nos despachasse aos profissionais que assistiríamos. Depois de todos devidamente encaminhados, restáramos eu e L., um colega de classe.
“Vocês acompanharão a enfermeira D.” nos disse a professora. “Ficarão na puericultura”. Ouvindo aquilo, senti-me realizado. Acompanhar crianças era meu sonho, especialmente os recém-nascidos. Assim, ela nos levou até a sala em que passaríamos o resto da tarde.
Depois de apresentados à enfermeira D., ela começou suas explicações sobre seu serviço.
“Já conhecem o sistema e-SUS?”
“Um pouco, sim”, respondemos. “Aprendemos um pouco sobre ele em nossa primeira vivência aqui no posto”.
“Certo”, ela continuou. “Então, venham aqui para que eu lhes mostre um pouco mais”.
Em sua empolgação quase que materna ao ensinar o filho a amarrar os cadarços, a enfermeira D. explicou passo a passo sobre a plataforma, sobre como são feitos os agendamentos, sobre o processo de triagem realizado pela equipe na sala à frente da que estávamos, etc. “Olhem aqui, esta paciente já está liberada e foi encaminhada a mim. Ela vem trazer a filha para sua primeira consulta. A menininha está com onze dias. Um de vocês, por favor, pode chamá-la?”
L. foi até a sala de espera e chamou pelo nome registrado no cadastro. Prontamente, uma mulher em torno dos trinta anos de idade se levantou, com a filha nos braços, e outras tantas cobertas, afinal, fazia frio, e caminhou para nossa sala. “Boa tarde”, cumprimentamos. “Como está a garotinha?”
“Olha, está tudo bem, graças a Deus”, respondeu a mãe. Apenas o rosto da menina podia ser visto em meio ao casulo de cobertores ao qual estava envolta. Os olhinhos fechados, a pele bem corada e a respiração tranquila de quem dormia um sono profundo confirmava aquilo que a mãe dizia.
Depois de uma série de perguntas, às quais eu e L. ouvíamos atentamente, e outros tantos assuntos cotidianos que revelavam uma proximidade bastante interessante entre profissional e usuário do serviço, a enfermeira finalmente pediu para que a mãe colocasse a filha sobre a maca e, já com o aquecedor ligado, retirasse, como quem descasca uma cebola, as camadas de roupa que recobria a jovenzinha.
Assim que deixou o colo da mãe, a garota começou a resmungar e se mexer. Longe do abraço protetor de sua progenitora, sentia-se, no mínimo, desconfortável. Quando os cobertores começaram a ser retirados, o resmungo transformou-se em choro e assim se seguiu até depois que a menina se encontrasse completamente desnuda. Foram medidas sua altura e as circunferências do crânio, do tórax e do abdome, assim como foram realizados outros testes psicomotores, aos quais a jovem respondeu satisfatoriamente, refletindo, portanto, um desenvolvimento adequado para sua idade. Dali, ela foi levada à balança e, mais uma vez, foi classificada como “normal”.
Mais ou menos nesse momento, alguém bateu à porta e, abrindo-a, colocou a cabeça para dentro. “Está atendendo?”
“Sim”, respondeu a enfermeira D., “aconteceu algo?”
“Chegou uma gestante com sangramento”, respondeu a técnica em enfermagem. “Ela está sentada aqui do lado da porta”.
Ela fechou a porta e se retirou. Todos nos entreolhamos, sabendo se tratar de algo potencialmente grave, mas continuamos aquele atendimento. Não faltava muito para terminar. Enfermeira D. checou o que restava e, antes de liberar mãe e filha, pediu para que eu e L. fizéssemos o Teste do Olhinho.
“Assim”, ela começou a explicar, “olhe através dessa lente e aproxime o instrumento do olho da paciente. Se aparecer uma luz vermelha em cima da pupila, tudo certo”.
Fizemos como ela nos explicou e, de fato, a luz vermelha apareceu. Liberamos, então, as duas para que pudéssemos chamar a próxima paciente.
Abrimos a porta e logo sentimos uma atmosfera pesada pairando sobre o casal ali parado. A mulher, com os olhos inchados e o rosto molhado pelas lágrimas, era amparada pelo marido, que, impotente, encontrava-se de pé ao seu lado.
“Pode entrar”.
“Conte-me o que aconteceu”, pediu a enfermeira enquanto a mulher entrava sem o marido.
Entre lágrimas e soluços, a gestante começou.
“Então, eu estava no supermercado aqui perto”, parou, respirou e continuou. “Do nada, senti algo quente escorrendo pelas pernas. Entrei em desespero. Sem ter um banheiro aonde ir, discretamente coloquei a mão por dentro da calça e, quando olhei...”, aqui, outra pausa um pouco mais longa, marcada pelas lágrimas pesadas que rolavam pelo seu rosto, “... era sangue. Liguei desesperada para meu esposo, que estava trabalhando, e, prontamente, ele foi me buscar até o supermercado. Ele me trouxe direto para cá. Estou, inclusive, sem documentos de tão correndo que vim”.
“De quanto tempo a senhora está?” Enfermeira D. perguntou com uma calma que eu não conseguia entender de onde vinha. Apenas com esse relato, meu coração estava acelerado e as palavras, que sempre me acompanharam, desapareceram, dando lugar à tensão, que começava a ocupar cada célula de meu corpo.
“Estou de três meses, eu acho”, respondeu a mulher.
Buscando as informações no banco de dados a partir do nome da gestante, a enfermeira descobriu que a gravidez estava em sua décima primeira semana, que, segundo ela, era um momento crítico da gestação. “Olha, vamos ver o que está acontecendo, mas se prepare para o pior. Deita ali na maca e tira as calças, por favor”.
Enquanto ela se despia, o choro, ainda contido, ganhava, aos poucos, dimensões de luto.
Quando tudo estava preparado, a enfermeira nos chamou para assistir ao procedimento, a fim de que pudéssemos aprender um pouco mais. Quando chegamos próximo à maca e vimos aquela cena, apesar de relativamente leigos, entendemos que já não havia o que fazer.
“Estão vendo o tanto de sangue? Olhem, já tem até um tanto coagulado. Chamem o marido”.
Enquanto chamávamos o homem, que, angustiado, esperava do lado de fora, a mulher se levantava, ainda sob lágrimas e se vestia novamente. Seu marido, provavelmente seu porto seguro, parou novamente ao seu lado e a abraçou enquanto as lágrimas banhavam o chão daquele consultório. Eu, parado ao lado da porta, assistia àquela cena com os braços para trás, cabeça baixa e mente agitada, buscando palavras que pudessem confortar aquele casal em um momento tão difícil.
“Vou encaminhá-los ao especialista”, disse a enfermeira. “Saindo daqui, podem ir direto para lá, mas, com toda a experiência que tenho, receio que tenha perdido o bebê”.
Aquelas palavras me atingiram como se uma flecha fosse atirada contra meu peito. Senti o peso de mil elefantes pisoteando minha alma. Enquanto o casal saía me dei conta do quão difícil é a vida e, principalmente, do quão inesperada é a morte.
Dentre os mistérios da existência, a morte daquilo que sequer nasceu jamais havia passado por minha cabeça. Assim, eu, que acreditava saber lidar com a perda de entes queridos, encontrei-me sem chão e sem reação ao ver um estranho, que nem chegara a deixar o útero materno, esvair-se no vermelho daquele sangue.