Vício

Se eu dissesse que deixava a chave da porta da frente no vaso de avenca estaria mentindo, apenas fugindo de um velho clichê, pois eu continuava “escondendo” a chave no antigo vaso de samambaia, como o resto do mundo o faz, ou na soleira da, ou no vaso de samambaia... é tradição. Eu devia andar desatento, a porta não estava trancada, e me bastou abaixar o trinco para que ela se abrisse, um risco, se considerarmos o quanto a violência grassa.

Lá estava ela, como se nunca houvesse saído, eu não me lembrava daquele vestido, mas o modelo não havia mudado radicalmente, repetiam velhas imagens de como eu imaginava que seria o seu vestido de agora.

Ela havia feito café, e com certeza trouxera o pó, eu já não usava aquela marca de café, habituei-me a um novo sabor, constatando, naquele instante, que não pretendia retornar ao paladar que se perdeu.

Caminhei até ela e a abracei, sem arroubo, sem violentar a paz que eu trazia comigo, foi um abraço quase que fraternal, nada muito efusivo, nada que revelasse ansiedade.

Não perguntei por onde ela havia andado, intrigava-me saber se ela voltou para ficar; o casaco dela ocupava o mancebo, onde agora só o meu agasalho era dependurado, aquele cabide secular já havia se reservado apenas para mim, sem que ninguém assim o determinasse.

Cabides, armários, lugares à mesa, lado na cama, canais na televisão, tudo enfim, incorporaram o meu EU, que perambulava pela casa sem ela, todos os pertences se fizeram egoístas, recusando uma nova divisão, o período em que ela se manteve afastada estabeleceu um monopólio onde só EU, quem ficou, a tudo coordenava, a tudo se fizera dono sozinho.

Devagar, sem precipitações, foi ficando claro que os projetos, as promessas, as realizações a serem cumpridas no retorno estavam desativadas, os cantos que, anteriormente, ela ocupou eram reminiscências, já não faziam falta.

O certo é que eu precisava contar a ela, que estava convencido de que todo o vazio que a ausência dela havia causado se preencheu, não com outra pessoa, mas o descaso, efeito da separação, somente fez de mim um viciado em esperar, certifiquei-me de que não senti saudades.

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 05/08/2019
Reeditado em 05/08/2019
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