Escrúpulos comerciais
Boa noite meus 23 fieis leitores e demais 36 que de quando em vez vem aqui na minha praia literária tomar um banho de SOLetrar. Eu já morei em Faxinal do Soturno, sabiam? FXNL do STRN é uma cidadezinha situada no umbigo do Rio Grande do Sul, ou seja, bem no meio.
Bom, quando eu morava lá (e não vou dizer mais nada sobre isso, é um segredo de minha biografia literária), minha vó ouvia muito Roberto Carlos, e o pequeno Bacamarte acompanhava a velhota, comendo arroz-de-leite, um doce típico do Sul do Brasil. Uma determinada canção, chamada O Progresso, lá pelas tantas, dizia:
"E as baleias desaparecendo por falta de escrúpulos comerciais..."
- Vó Eva, o que são escrúpulos?
- Não sei, Tunico.
Minha vó não era chegada nas letras e nem culta, mas cozinhava muito bem. E devia transar muito bem também, visto que teve dez filhos. Mas eu lá, pensando com os meus botões o que eram os tais escrúpulos que, por estarem em falta, provocavam o desaparecimento das baleias. Desaparecer era morrer, pensei e, no mesmo raciocínio, concluí que só podia ser de fome. Sim, escrúpulos era como se chamava a comida das baleias. E, se eram escrúpulos "comerciais", então deviam ser levados até as baleias por navios que singravam os mares levando produtos para vender entre países.
Assim, o pequeno Bacamarte via os escrúpulos, na sua cabeça projetados como enormes tabletes de caldo de carne ou galinha, sendo jogados ao mar pela popa dos navios, enquanto as baleias os comiam em bando, como se fossem galinhas disputando milho.
- Vó Eva, acho que escrúpulos são a comida das baleias.
- É?
- É.
- Tá bom, Tunico. Quando teu vô chegar, a gente pergunta pra ele.
Vô Antônio era letrado, tinha até biblioteca particular. Mas não chegou em casa aquela noite, morreu atropelado pelo caminhão do lixo quando saiu da praça onde jogava damas (e, conforme as más línguas, cuidava as jovens damas passar) com outros aposentados. Trágico. E, assim, passei a infância sem perguntar pra ninguém o que eram escrúpulos comerciais, pelo trauma. Lembrar dos escrúpulos e das baleias faziam lembrar do vô Antônio atropelado pelo caminhão de lixo. Tiveram que dar um bom banho nele. No que sobrou dele, claro.
Vó Eva, todavia, continuou ouvindo Roberto Carlos e eu comendo arroz-de-leite que ela fazia. Então comecei a fuçar nos livros da biblioteca do vô Antônio, pois, quando ele era vivo, tinha muito ciúme dos livros e não deixava ninguém mexer neles. Vó Eva não ligava, pois o lance dela era seu forno e seu fogão. E foi assim que eu, lendo, aprendi o que eram de verdade escrúpulos e me tornei o hoje Grande Antônio Bacamarte, esse grande cronista que vocês tanto admiram.
Sei que parece inescrupuloso dizer isso, mas não foi, de todo mau, o caminhão de lixo ter atropelado o vô Antônio, pois, não fosse isso, eu talvez hoje não seria o grande Antônio Bacamarte que vocês admiram. O vô já era bem veterano mesmo, uns anos a mais e morreria do mesmo jeito, logo, se foi no momento certo e por uma boa causa, a causa da literatura e para o bem do seu neto, eu. Gostava dele, mesmo ele sendo chato - não me levava na praça quando ia jogar damas (Ainda bem. né! Imagina?), mas a sua biblioteca foi meu nirvana intelectual, a qual não tive nenhum escrúpulo literário em devassar.
Eis uma história cabulosa de minha infância, acontecida, ironicamente, em Faxinal do SOTURNO.
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Era isso pessoal. Toda sexta, às 17h19min, estarei aqui no RL com uma nova crônica. Abraço a todos.
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http://charkycity.blogspot.com
(Não sei porque eu ainda coloco o link desse blog, eu perdi a senha e não atualizo ele há séculos. Até eu descobrir o motivo pelo qual continuo divulgando esse link, vou mantê-lo. Na dúvida, não ultrapasse, né. Acho que continuarei seguindo o conselho que a Giustina deu num comentário em 23 de outubro de 2013: "23/10/2013 00:18 - Giustina
Oi, Antônio! Como hoje não é mais aquele hoje, acredito que não estejas mais chateado... rsrrs! Quanto ao teu blog, sugiro que continues a divulgá-lo, afinal, numa dessas tu lembras tua senha... Grande abraço".).