As super vendas

Movia-me em torno do TodoDia, estava uma tarde relativamente fria em União, uma fome repentina me assaltou; decidi, como se diz na giria, entrar no recinto para comprar um Treloso, essa marca marcante de biscoitos, e fiz ''descobertas''. Mas antes de seguir, é preciso perder-se mais um pouco e explicar esse assalto de fome; quem o faz é a Ciência, segundo a qual, nesses dias calmosos nosso corpo digere mais energia que nos dias calorosos. Isso esclarece nossa tendência a comidas nessa época de frio e nos inocenta do pecado da gula, registre-se.

Explicada essa explicação, segue-se outra, igualmente desnecessária: ao entrar no TodoDia para comprar o referido biscoito e, dado os acontecimentos ora ocultos, ''descobri'' que há vezes em que a gente passa vergonha em público, coisa muito comum nos dias de hoje, não por querer, mas por falta ou excesso de informação. No mundo moderno, com um celular a mão e acesso à internet, podemos dispensar muitos aperreios do cotidiano; é só navegar na rede, fazer os pedidos dos produtos, pagar com cartão de crédito e aguardar a entrega do pedido. Mas, enfim, cheguei à atendente e lhe perguntei onde ficava o armário dos Trelosos.

Ela, como acontece com as atendentes em geral ante um cliente em potencial, me sorriu e disse, apontando para uma fileira de aço: "Senhor, a gôndola dos biscoitos é aquela ali. Mais alguma informação?" Eu, já envergonhado por pedir informção dispensável, sem saber direito o que era uma gôndola, uma vez que, na minha época, os supermercados chamavam-se venda, quitanda, mercearias e os produtos eram postos em armários, declarei-me inocente e, acredito, fui perdoado. Por ora, diga-se, pois foi só dar alguns passos e ver, em uma parte de uma refrigerada prateleira sem pratos, macaxeira descascada, que voltei à moça do atendimento para me certificar de o que tinha visto não era delírio, mas macaxeira mesmo, descada e refrigerada, pronta para ser cozida e esquentar humanos. Já então, ela me olhou estranho, penso, quem sabe e talvez, intentou chamar o gerente ou força maior para me esclarecer o que se tem em supermercados de hoje.

Impulsionado por essa descoberta, realizei algumas vistorias nas modernas gôndolas do TodoDia, e fiquei assim admirado como se diferenciam dos armários das outrora quintandas e mercadinhos. Em comparação às quitandas e mercadinhos, essa super venda supera em colorido, extensão, modo de pagamento, que aceita cartão de crédio/débito e perde longamente em acolhimento.

No TodoDia há maquinas que leem preços e códigos de barras; que transportam grandes cargas de produtos de uma só vez; que alimentam o sistema informatizado de abastecimento e segurança; que vigiam os vigilantes; que atendem os atendentes; máquinas máquinas. Mas as quitandas de ontem tinham o que chamo de ''cheiro de vida''. Chegávamos e éramos atendidos e convidados pelo nome; para além das relações comerciais, havia relação humana entre as partes. É bem verdade que não dispunham em estoque de macaxeiras descascadas, caixas eletrônicos 24h, máquinas leitoras de código de barras e QR Code... mas nem por isso menos vivas que as super vendas de hoje.

Hoje é sábado e, como diz Vinicius de Moraes em seu belo e triste poema "Dia da Criação", "[...] A vida vem em ondas,

como o mar / Os bondes andam em cima dos trilhos / E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar." Assim, não era para eu está pensando nem escrevendo pessimista, já que, sabidamente, desde a "Criação", avançamos; embora, de minha parte, confesso, um avanço com sabor de retrocesso e menos de vida. Não sei se no dia da criação já havia as quitandas, os mercadinhos, leiteiro, as super vendas, o sábado. Gosto, no entanto, de pensar que sim.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 03/08/2019
Reeditado em 04/08/2019
Código do texto: T6711348
Classificação de conteúdo: seguro