Aquela primavera
Uma pequena fagulha de receio passou por sua cabeça. Balançando os pés para frente e para trás pensava na última primavera como algo esquecido, como papéis amarelados numa gaveta velha de escrevaninha. Lá escapava-lhe, em tinta, seus amores, devaneios, perguntas indissolúveis, e algo que sempre esteve presente em qualquer estação do ano, uma pergunta íntima, inseparável, como uma canção que tocava aos seus ouvidos desde sempre: "quem eu sou"?
Pensava ser alguém importante, afinal, um pianista era alguém que ensinava aos outros a arte de amar através da música. A cada toque de teclas há uma mensagem íntima, cuja resposta cada um pode dar, refletindo a impressão do gosto que desce pelos ouvidos e é digerido pelo coração. Porém, o que faz um pianista sem dedos? Era como se a ponte que o ligava ao piano houvesse quebrado de uma forma trágica e irreversível.
Ele sentia que o amor tinha ido embora junto com cada pedaço de ossos, juntas e articulações. Alguém, sem amor, lhe tirou o amor que tinha. Então, ele olhava para o piano como um objeto de amor impossível agora; na verdade lhe tiraram a voz, pois o piano falava por ele.
Enquanto observava a vento mover as folhas das árvores com o seu simples toque, sem haver precisamente um toque visível, lembrou-se da sua primeira aula de piano. O velho professor olhou fixamente em seus olhos e disse: "cada som que você produzir com amor jamais lhe será tirado". Então sorriu, e sentiu algo sendo tirado do seu peito. Percebeu que a música sempre faria parte de si, não importando o quanto estivesse longe do seu amor fisicamente, bastava amar com espírito.
Naquela primavera alguém o roubou, mas diante do amargo gosto da perda, ele finalmente descobriu a resposta que buscava: ele não era qualquer um, e muito menos menor que ninguém, não era o mais forte, bonito, inteligente, sábio ou feliz; era, simplesmente, um homem que aprendeu o amor atravéz do que fazia, mas que na habitualidade da vida não entendia que já era amado por levar amor.