O Valor do Tempo
“Se o tempo é a moeda mais valiosa do mundo, quanto vale o tempo?”
A questão colocada traz uma necessária reflexão, antes, dos conceitos que cingem o termo, pois neles estarão fundados o que será parametrizado para a sua valoração. Ou, e talvez seja o que se reduza, todo o pensar será posto à prova para mostrar que o seu valor não se submeta a qualquer rogo; assim como a sua marcha, que é inexorável. A ver.
Do tempo (do latim: tempus) podemos distinguir três concepções fundamentais:
Primeiro. O tempo como ordem mensurável do movimento. Na concepção mais antiga e difundida relaciona-se com o céu (a esfera que abrange tudo), que com o seu movimento ordenado permite medi-lo perfeitamente. Vincula-se ao conceito cíclico do mundo e da vida do homem. É definido como a imagem móvel da eternidade, o que pretende dizer que, na forma dos períodos planetários, do ciclo constante das estações ou das gerações vivas e de qualquer espécie de mudança, ele reproduz no movimento a imutabilidade do ser eterno.
A expressão “o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois” (Aristóteles) é a expressão mais perfeita dessa concepção, que identifica o tempo com a ordem mensurável do movimento. Não é diferente outra definição contemporânea, segundo a qual o tempo é “o intervalo do movimento cósmico”. Na verdade, o intervalo não passa de ritmo, ordem, movimento cósmico. E não é diferente tampouco do significado de outra definição da mesma época que assenta que o tempo é uma propriedade, um acompanhamento do movimento.
Na Idade Média, um dos desdobramentos dessas definições do tempo foi lhe dar o atributo de “imagem (fantasma) do movimento”, porquanto imaginamos no movimento o antes e o depois, ou seja, a sucessão. Esta concepção, vinda da Antiguidade, o conceito cíclico do mundo e da vida do homem – vejamos, também, a metempsicose, a crença na transmigração da alma de corpo em corpo –, nos levou, ne época moderna ao conceito científico de tempo. Esta concepção de tempo fundamento a mecânica de Newton, que distinguia o tempo absoluto do tempo relativo, mas a ambos atribuía ordem e uniformidade.
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, flui uniformemente e também se chama duração, sem relação com nada de externo. O tempo relativo, aparente e comum, é uma medida sensível e externa da duração por meio do movimento. Nessa definição de Newton, o uniforme fluir da duração absoluta é confrontado com a uniformidade do movimento que é tomado como medida do tempo.
Posteriormente, ao afirmar a relatividade da medida temporal, Einstein na realidade não inovou o conceito tradicional de tempo como ordem de sucessão: só negou que a ordem de sucessão fosse única e absoluta. Em confronto com a física de Einstein, houve o retorno da proposta da tese kantiana da identidade do tempo com a causalidade: “o tempo é a ordem das cadeias causais, este é o principal resultado das descobertas de Einstein”. A redução do tempo a causalidade pode ser considerada a mais importante proposição filosófica apresentada no campo da concepção do tempo como ordem.
A disputa clássica entre o absolutismo e o relacionismo teve, na relatividade geral, motivos suficientes para a fundamentação de ambas as posições e não há razão para se entrever uma possível solução do caso.
Segundo. O tempo como movimento intuído. A esta concepção vincula-se o conceito de consciência, com a qual o tempo é identificado. Considera-o como intuição do movimento ou “devir intuído”. Esta definição acrescenta ser o tempo o princípio mesmo da autoconsciência pura, o simples conceito ainda em sua completa exterioridade e abstração. Significa dizer que não se identifica o tempo com a consciência, mas com algum aspecto parcial ou abstrato da consciência.
O tempo não seria outra coisa senão o sentido interno que se torna objeto para si. A rigor, a concepção de tempo como intuição do devir traz em seu bojo que o tempo não existe fora da alma: “ele é a vida da alma e consiste no movimento pelo qual a alma passa de um estado a outro de sua vida”. Assim, pode-se dizer que até o universo está no tempo só na medida em que está na alma, ou seja, na alma do mundo. A melhor expressão e difusão dessa doutrina na filosofia ocidental deve-se a Agostinho: “De que modo diminui e consome-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que já não é mais, senão porque na alma existem a três coisas, presente, passado e futuro?”
A alma espera, presta atenção e recorda, de tal modo que aquilo que ela espera passa, através daquilo a que ela presta atenção, para aquilo que ela recorda. O interessante é observar que, ainda segundo Agostinho, ninguém nega que o futuro ainda não existe, mas na alma já existe a espera do futuro; ninguém nega que o passado já não existe, mas na alma ainda existe a memória do passado. E ninguém nega que o presente carece de duração porque logo incide no passado, mas dura atenção por meio da qual aquilo que será passa, afasta-se em direção ao passado. É espetacular.
Na filosofia moderna, essa concepção contrapõe-se ao conceito científico de tempo. O tempo da ciência é especializado e, por isso, não tem nenhuma das características que a consciência lhe atribui. Ele é apresentado como uma linha – a linha do tempo –, mas a linha é imóvel, enquanto o tempo é mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o tempo é aquilo que se faz. Aliás, é aquilo graças a que todas as coisas se fazem.
Terceiro. O tempo como estrutura de possibilidades. Melhor explicando, esta concepção é derivada da filosofia existencialista e apresenta inovações na análise do conceito do tempo, exatamente transformando-o em estrutura da passibilidade. Vejamos. As duas concepções anteriores fundam-se no primado do presente, ao passo que essa é o primado atribuído ao futuro na interpretação do tempo. Aqui, o tempo é interpretado em termos de possibilidade ou proteção: o tempo é originariamente o por-vir.
Mais precisamente: quando o tempo é autêntico, originário e próprio da existência, é o porvir do “ente para si mesmo” na manutenção da possibilidade característica como tal. Porvir não significa um agora, que, ainda não tendo se tornado atual, algum dia o será. Mas sim a ação futura que o ser chega a si mesmo com base no seu ”poder-ser” mais próprio. É a antecipação que torna o ser propriamente porvindouro, de sorte que a própria antecipação só é possível porque o ser já chegou a si mesmo.
O passado é condicionado pelo porvir porque, assim como são possibilidades autênticas aquelas que já foram, também já foram as possibilidades às quais o homem pode autenticamente retornar e de que ainda pode apropriar-se. Define-se que tanto o tempo “autêntico”, em que o ser projeta sua própria possibilidade privilegiada, quanto o tempo “inautêntico”, que é o da existência banal, em que o tempo se torna uma sucessão infinita de instantes, são o sobrevir ao homem daquilo que a possibilidade projetada lhe apresenta.
Foi Heidegger o autor dessa análise que, sem dúvida, contém um grande compromisso metafísico, porquanto o tempo é considerado como uma espécie de círculo, em que aquilo que se tem perspectiva no futuro é aquilo que já foi, e o que já foi é aquilo que se tem perspectiva para o futuro. Os elementos de interesse filosófico na análise de Heidegger vem da mudança da ordem causal para a estrutura da possibilidade; de entender o futuro como futuro e não como o presente do futuro; e da introdução de novos conceitos, expressos por termos como projeção, antecipação e expetativa, que mostraram-se úteis e passaram a fazer parte do uso filosófico corrente.
Isto posto, vem-se a necessidade de convergir para o quanto vale o tempo.
Tome-se que, em geral, o valor abrange o que deve ser objeto de preferência ou de escolha. Desde a Antiguidade este termo foi usado para indicar a utilidade (o preço) dos bens materiais e a dignidade ou o mérito das pessoas.
Contudo, o seu uso para o tempo deve ser entendido em sentido subjetivo, como a sua “contribuição para uma vida segundo a razão”, ou como a sua “virtude intrínseca como digno de escolha”. A noção do valor no mundo moderno ocorre exatamente da noção subjetiva do que poderia ser pago por suas faculdades, portanto não há de ser absoluto, antes depende da necessidade e do juízo de outro. Qual a necessidade do tempo? Que juízo pode dele se fazer?
Como um bem, ao tempo poderia se dar atributos objetivos, como agradável, belo ou verdadeiro? Ou algo que se aprecia e aprova, como um bem que é bem para os seres racionais?
Parece-nos ser viável reproduzir, para o tempo, a divisão análoga que caracteriza a teoria do bem: entre um conceito metafísico ou absolutista e um conceito empirista ou subjetivista do seu valor. O primeiro atribuiria ao valor do tempo um status metafísico, que independe completamente das relações com o homem. O segundo consideraria o modo de ser do valor do tempo em estrita relação com o homem ou com as atividades humanas. Sem se aprofundar nesses conceitos, o que se depreende é que o valor do tempo não consiste em sua realidade, mas em seu dever-ser. A mediação entre o a realidade e o valor em si é esclarecida com o conceito de sentido: a referência da realidade, ou parte dela, inserida na história e realizada pelo homem.
Assim, reconhecemos que o valor do tempo tanto está de algum modo presente no homem – nas atividades humanas e no mundo humano – quanto na independência dos feitos humanos – um status indiferente em relação ao mundo humano. Ou seja, ao invés das características do ser perfeito, da unidade e da universalidade, o que há, em contraposição, é a multiplicidade, a mutabilidade das manifestações empíricas. O tempo adquire valor quando é investido por um interesse qualquer, daí a concepção do relativismo e da multiplicidade, porque os valores e as normas nascem e morrem na história e não subsistem fora dela nem acime de seu curso.
Portanto, não existem valores absolutos do tempo, e são valores só aqueles que, em determinadas condições, são reconhecidos com tais. Toda valoração inteligente do tempo é também crítica. Toda teoria do valor do tempo é necessariamente um ingresso no campo da crítica. Em outros termos, é a disciplina inteligente das escolhas humanas. Autenticamente, é uma espécie de terceira via entre absolutismo e relativismo a condição pluralista da existência do homem. É a constituição pluralista do homem que dará o valor do tempo para cada indivíduo.
O tempo, portanto, há de valer conforme a sua pluralidade, a pluralidade para a pessoa que dele faz uso em determinado período da sua existência. Pluralidade que se confunde com a possível multiplicidade dos projetos de vida. Vale dizer, das atitudes que o homem pode assumir diante de si mesmo, dos outros, do mundo e de Deus – seja o significado que a palavra lhe tenha.
O indivíduo, pois, que deseje saber quanto vale o tempo, deve entender a pluralidade da sua existência. Que entenda a contraposição ao seu egoísmo que isso representa. Que entenda o reconhecimento da possibilidade de soluções diferentes para o seu ser ou a possibilidade de interpretações diferentes para a mesma realidade. Então este indivíduo terá a exata noção deste valor.