TRABALHE DURO E FIQUE HUMILDE

De repente, o barco para.

Na camiseta do proprietário do barco, em inglês, se observava a frase que entitula esse conto: “trabalhe duro e fique humilde”.

Duas mulheres, três rapazes, quatro crianças, dentre elas uma garota. Um dos rapazes, dono do barco, confere o problema: combustível esgotado. Mas como era possível, já que ele havia feito a previsão correta para aquele passeio? Mas, gota a gota o combustível havia se esvaído por um pequeno orifício, e ainda faltavam alguns quilômetros para o destino final.

Uma das mulheres, bem humorada, porém preocupada, deu uma risada e disse:

– Pode parar de brincar, nem é primeiro de Abril. Manda bala para chegarmos logo, temos crianças com fome aqui.

Mas pela cara do homem, a coisa era séria. Ele não estava brincando, até porque era dia trinta de Dezembro. Explicou o vazamento, e a alternativa naquele momento era a força muscular masculina. O par de remos foi transferido para os outros dois rapazes, que, em sincronia, começaram a empurrar a água com as pás.

Um desses esforçosos rapazes acabou se lembrando e comentou:

– Gente, que coisa. Quando saímos para o passeio, comentei com a minha esposa, com o nosso filhinho de dois meses nos braços: “Não é para você ir não, você tem filho para criar. Imagina se esse barco acaba a gasolina e fica escuro? Pode quietar por aqui mesmo”… E nós dois caímos na risada. E não é que o negócio aconteceu mesmo?

Vagarosamente, o barco começou a se movimentar. Muito vagarosamente, inclusive, pois o vento soprava ao contrário. Poucos metros e as línguas já de fora. Um dos remadores, amenizando a coisa toda, comentou:

– Ainda bem que está nublado, imaginem vocês se o sol estivesse forte e esturricando as nossas costas?

Mal terminou de falar, meio que por mágica, as nuvens se afastaram e o sol mostrou toda a sua graça. E calor! O ofício agora um pouco mais complexo, precisou sem embebido com uma camada generosa de protetor solar. Todos ali, agora com as costas e narizes brancos feito a antiga propaganda do Sundown (Ah! Se você me desse bola…).

Um dos garotos, que antes reclamava de dois em dois minutos de fome (na verdade ele era o porta voz de todas as crianças famintas, que já se distanciavam umas cinco horas da última refeição) agora permanecia quieto, observando o vai e vem dos remos, e tentando ajudar junto a garotinha, puxando a água com as miúdas mãozinhas, no mesmo ritmo dos dois adultos.

A luta contra o vento contrário, o sol, o calor e o cansaço durou eternos trinta minutos, até que os remos encontraram o fundo daquela água toda. Era hora de mudar de estratégia. Os homens, descendo do barco, começaram a andar ao seu lado, empurrando e conduzindo a embarcação ainda contra o vento.

Um misto de sentimentos naquele momento. Uma das mulheres, incapaz de ajudar em qualquer outra coisa, somente retocava o protetor solar dos pequenos e continha as crianças de não pesarem o barco de um mesmo lado e dificultar ainda mais o trabalho dos homens, que já estava mais complicado agora pelos pés tocando tocos, lama, areia e pedras. Essa mesma mulher durante toda a viagem, quebrava o silêncio com pequenos gemidos e gritinhos a cada viradinha ou instabilidade da embarcação.

Um dos garotos, tão empolgado até então com o passeio, cruzou os bracinhos, franziu a testa, fez um biquinho e resmungou:

– Não ando mais nunca nesse barco.

A forma como ele se expressou fez a trupe toda cair na gargalhada, mesmo diante daquele momento controverso. Antes do combustível se esgotar, outra fala havia feito todos descontraídos. Um dos rapazes, passando por ranchos de donos abastados, comentou:

– Olha o pensamento de pobre: para quê tanta riqueza se eles não são felizes? – E gritou alto, em direção aos “primos ricos”: – Por acaso vocês são felizes? – A mulher na proa completou: – Olha só aquela criança ali, em sua praia particular, brincando sozinha. Que graça ter uma praia só dela e não ser feliz? – Foi uníssona a manifestação de graça de todos os tripulantes.

Voltando a saga, mulheres e crianças carregados como em uma carruagem no tempo da realeza, faziam os homens tropeçarem de exaustão. Os obstáculos agora eram observados de perto, cada toco, píer caído, pedregulho ou afastamento da margem era sentido com ênfase, coisa essa que não acontecia em tempos do motor em funcionamento. E lá se foram mais uns quarenta minutos…

A mulher sentada na proa, com o menor dormindo em seu colo, observou que o mesmo apagou junto com o motor. Ansiosa, perguntou ao dono do barco:

– Existe algum sinalizador no barco? Daqueles de filme, que podemos jogar e, com uma fumaça colorida, o pessoal no nosso destino possa perceber que precisamos de ajuda? – E começou a procurar por todos os lados.

O dono da embarcação, surpreso, deu uma risadinha de lado, expressou com uma negativa engraçada e continuou a fazer esforço. A responsável pelo comentário, ainda esperançosa por uma alternativa, continuou:

– E lá no seu rancho para onde estamos retornando tem binóculo? Se existe, eles podem tentar espiar, nos localizar e vir prestar ajuda, não podem? E celular, algum a bordo, gente?

Realmente um dos rapazes havia levado o seu aparelho, que se encontrava descarregado e jogado em um canto por ali, inútil. Pelo jeito, ninguém naquele veículo era viciado em selfies. Infelizmente.

Minutos depois, ao lado de um píer desconstruído pelo poder das águas, um rancho humilde, um casal aproveitando a vista. Faltava ainda pelo menos uma hora de esforço físico e não se sabe lá quantos obstáculos, e toda a ajuda seria bem-vinda.

Em voz alta, um pouco afastados, os tripulantes começaram a perguntar desordenadamente:

– Tem gasolina? – Perguntou o proprietário do veículo.

– Celular? Telefone? – Outro adulto questionou.

– Comida? Biscoito? – As crianças em coro.

– Banheiro? – Outro adulto com um sorriso amarelo.

O casal, vendo o princípio de desespero e o cansaço na voz de todos, foi tentando ajudar da forma que podia. Depois de conjecturas sobre o tipo de combustível existente naquele lugar, surgiu uma garrafa plástica verde, e em seu interior, o líquido dourado tão desejado! Aleluia!

O barco, pirracento que só, demorou a aceitar aquele alimento. Corações apertados, a mulher no meio do barco, que só se expressava com pequenos gritos e gemidos na instabilidade, fechou os olhos e alisou o veículo, como se pedisse “vai barquinho, coopera conosco, seu lindo”.

O ronco do motor fez com que todos sorrissem e as crianças batessem as mãozinhas em palmas. Enfim, acabaria aquela saga surreal e, sãos e salvos, pisariam todos em terra firme.

Uma das crianças, antes do ocorrido, havia ajudado o condutor a guiar o barco, e se sentiu um verdadeiro homenzinho crescido. Ignorando as circunstancias de agora, e, aproveitando a sua última oportunidade, insistiu em voltar ao comando. O outro garoto comentou com esse que ambos eram os “salvadores do grupo”, e toda a trupe caiu novamente na gargalhada.

A chegada, bem mais tardia que o previsto, fez todos os que esperavam para receber com um café quentinho, serem audiência de cada uma das nove versões diferentes, dos nove aventureiros agora em segurança, falando todos ao mesmo tempo, esbaforidos. Detalhe que o menor, que apagou junto com o motor, acabara de despertar e comentava o quanto o passeio havia sido legal. Mal sabia ele…

As versões da história podem até ser diferentes, mas todos, sem exceção, guardarão aquela tarde de trinta de Dezembro para sempre em suas memórias.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Que lições podemos retirar dessa história?

Independente da previsão, imprevistos acontecem. Leve sempre uma fruta, iogurte ou biscoito para as crianças. Você nunca sabe, realmente, onde será a próxima parada.

Bom humor e pensamento positivo são primordiais em qualquer situação, incluindo, principalmente, as que fogem ao nosso controle.

As coisas podem piorar. Por isso, ser estratégico consiste em ter mais de uma carta na manga, e nunca colocar todos os ovos no mesmo cesto.

Na vida, às vezes os ventos podem soprar ao contrário. Equilíbrio, sincronia e “não parar os remos”, é o segredo para se chegar ao destino. Rápido nem sempre é a velocidade correta. O melhor é estar sempre em frente.

Independente do poder aquisitivo, posses ou do tamanho do rancho, a base da sobrevivência de qualquer pessoa é sempre a mesma: alimentar, descansar e estar seguro.

A ajuda pode vir do improvável; de quem e na hora que você menos espera.

De perto, os problemas parecem ser bem maiores e mais complexos. Se afastar, pensar e analisar as questões de forma macro, global, como se você pudesse sobrevoá-las, ajuda a resolver os dilemas. Sair do meio das árvores e observar a floresta, de cima, pode ser essencial para enxergar as coisas sobre outro prisma.

Sinalizadores com fumaça colorida, na prática, existem mesmo somente em filmes.

Selfies às vezes podem matar, dizem os noticiários. Mas como tudo na vida possui dois lados, selfies também podem ajudar, e muito…

E, por fim, e não menos importante: nem todo ronco causa insônia ou incomoda as pessoas. Às vezes, o ronco até salva.

[Nivea Almeida – 03.01.2018]