TEATRO DE REVISTA III

PÕE CÍTRICO NISTO

Nelson Marzullo Tangerini

Em março de 1956, o jornalista Edmundo Andrade entrevista o já desiludido artista Nestor Tangerini para o jornal carioca A NOITE. A matéria é publicada no referido periódico de 8 a 14 de março de 1956:

“NESTOR TANGERINI: O MESTRE DOS MESTRES

O intelectual continua no anonimato, enquanto suas produções brilham nos cartazes da cidade – Poeta satírico dos bons, caricaturista de traço original, compositor, professor, etc.

Texto de EDMUNDO ANDRADE

Entre os intelectuais do momento, não sei de nenhum que, como Nestor Tangerini, brilhe em quase todas as modalidades da arte.

Conquanto apareça mais na qualidade de escritor teatral e humorista, ele é, ainda, poeta, músico, professor, caricaturista, etc.

Para o teatro, escreveu diversas revistas, todas excelentes, dentre as quais Estupenda!, Magnífica! e No Tabuleiro da Baiana, para a maior temporada da grande Companhia Jércolis, em 1936.

Como poeta, na expressão máxima da palavra, pouco aparece, mas é tão brilhante como no humorismo, em que é mestre, incontestavelmente.

Quando tinha os dois braços (pois perdeu o braço esquerdo em 1940, num acidente de ônibus), tocava piano, e era, segundo nos informam, delicioso executor de valsas, que dedilhava quase que exclusivamente para seu deleite.

Professor, leciona, de preferência, Sintaxe e Estilística, ensinando, da gramática, aquilo sem o que não teríamos uma arte de escrever.

Na qualidade de caricaturista, prima pela originalidade, pelo seu traço todo pessoal: o da linha reta, do qual tira efeitos surpreendentes.

Além disso, é meio arquiteto, conhece alguns ofícios e tirou dois cursos superiores, cujos títulos não exibe.

Já escreveu para a Mayrink Veiga e Rádio Clube do Brasil, através de programas de Ronaldo Lupo (1), que se tornou intérprete exclusivo das cançonetas do incomparável humorista patrício.

Esboçado este preâmbulo, passemos a apreciar o polimórfico artista em algumas facetas de sua inteligência, começando pelo seu primeiro trabalho, lançado por Humberto de Campos, em março de 1922, na revista A Maçã. (2)

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Na época, foi um sucessão este soneto de Tangerini, sendo elevado o número de artistas que o incluíram no seu repertório. (3)

Idéia bem adversa poderá ter o leitor da verve humorística de Tangerini, quando ele se transforma num assassino, matando e compondo o epitáfio que se segue:

Qual doce pombinha mansa

dormindo aqui muito bem,

a minha sogra descansa.

- e o genro dela também...

A sogra e a esposa do poeta não gostaram do gracejo, mas o público o apreciou e muito, e a quadrinha popularizou-se. E, por falar em quadra – vejamo-lo, aqui, levando de vencida o famoso Campo-amor, através das quadras belíssimas que transcrevemos:

Essa boquinha encarnada

- beijo em flor, flor em botão –

é a mentira estilizada

em forma de coração...

Quando a distância se vence,

num trem campista sem dó,

é que a gente se convence

de que tudo, tudo é pó!

Não me tiveste amizade;

mas, também, eu me vinguei:

enforquei tua vaidade

no colar que te comprei...

Ainda fazendo humorismo, em forma de soneto, conhecemos de Tangerini aqueles dois maravilhosos trabalhos, que são Deusa da moda (4) e Você. O primeiro é excelente, pela construção em que é conduzido: o enjambement e o inesperado do desfecho, gracioso e de efeito. O segundo, até o penúltimo verso, em estilo camoniano, é todo uma preparação para encerrar um erro gramatical muito bem justificado no último verso: - Você é muito ótima demais...

Sendo Tangerini um dos mais conceituados revistógrafos brasileiros, senão da América do Sul, é comum, nos dias que correm, vermos, constantemente ótimos quadros e cortinas cômicas de sua autoria fortificando peças de outros produtores.

É alto funcionário dos Correios e Telégrafos, e ocupa o cargo de Secretário da Escola de Aperfeiçoamento do D. C. T., tendo sido, agora transferido para o Engenho de Dentro. É homem cheio de afazeres, e está afastado do Teatro por não admitir essa história de só receber um terço ou metade dos direitos autorais, como estabeleceram para os autores os empresários do teatro de revista, os quais impõem figurarem como coautores (5) para justificar a exploração.

Tangerini precisa voltar aos cartazes luminosos da cidade, pois os espectadores reclamam seus trabalhos para a cena, em face da pobreza quase total de inspiração dos atuais escritores do teatro musicado, notadamente no terreno humorístico, ou seja: no da arte de fazer graça”.

Abaixo, notas sobre a entrevista concedida ao jornal A Noite:

(1) Ronaldo Lupo [Lupovici]: cineasta, compositor, chansonier e humorista.

(2) CENAS DO RIO: Soneto publicado no livro Humoradas... [obra póstuma]

(3) Alguns artistas gostavam tanto de CENAS DO RIO, que se achavam donos do soneto. O caso mais escandaloso é o de um famoso autor de marchinhas e hinos dos clubes do Rio, que se dizia autor destes versos. Tangerini fora informado do ocorrido, por amigos, e procurou o cidadão para dizer-lhe que aquele soneto era de sua autoria e que aquela atitude não era correta.

(4) O jornalista se refere ao soneto QUANDO ELA PASSA.

(5) Nestor Tangerini foi procurado, certa vez, por um aclamado autor de revistas. O famoso empresário teatral, que não tinha habilidade alguma para escrever mas ganhava parceira porque tinha dinheiro, queria que Tangerini escrevesse para a sua companhia. Oferecia-lhe muito dinheiro e cartaz. Em troca, pedia parceria. Indignado, o escritor respondeu-lhe: “- Você é rico e eu sou pobre. Mas, eu, sendo pobre, sou mais rico que você”. E não fechou negócio.

Enfim, seguiu, aqui, um pouco da sinceridade do leonino Nestor Tambourindeguy Tangerini, que voltaria a escrever, em 1959, mais duas peças, que seriam encenadas no Teatro Zaquia Jorge, de Madureira.

A partir de 1960, o teatrólogo, desiludido e cítrico, afasta-se definitivamente do teatro, uma de suas maiores paixões.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 31/07/2019
Código do texto: T6708839
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