Ação e reação
A garota retira o celular do bolso para ver as horas. Aproxima-se a hora máxima noturna. Estava vindo do colégio. À sua frente duas ou três pessoas bem adiantadas. A rua era iluminada. No céu, a lua se escondia, juntamente com as estrelas. Não havia ponto de ônibus próximo. Precisava andar bons quilômetros até o local onde passava sua condução. Estava cansada. Fizera uma prova de Física, algo sobre ação e reação. Algum cientista, num tempo distante, descobrira coisas e as tornara leis. Engraçado, se descobrem leis, como se elas não fossem criadas, mesmo as mais óbvias. Ficou pensando na nomenclatura: lei, lei. A lei da gravitação, por exemplo, (o assunto também caiu na prova) não é uma lei. As leis existem para serem violadas. Quem violará a lei da gravitação? Enfim, de lei em lei é que o homem se desentende.
Lembrou-se de que a amiga ligara momentos antes, enquanto fazia a prova. É lei não atender ao telefone durante a prova. Mas também é uma lei retornar a ligação, lei da cordialidade e amizade. Retira novamente o celular do bolso e disca o número da amiga. Preferiu utilizar o foninho, deixando o celular no bolso. A amiga atende. É lei atender o celular quando ele toca. Começaram a conversar, sempre introduzindo o diálogo com um oi, olá, como vai, beleza, tudo bem, sumiu... lei da função fática da linguagem. Entreteve-se tanto com a conversa que não percebeu o vulto que se aproximava. Continuou seus passos normalmente.
De repente, o vulto chegou mais perto. Parecia ter algo nas mãos. Aproximou-se da garota e com voz trêmula disse: “passa o celular, não olhes para trás, não grites e não corras!”. A garota, naturalmente se assusta. Ação e reação. Lei. Imediatamente, a garota olha para trás, começa a gritar, não entregou o celular e correu. Ação e reação. Lei. Saiu gritando “ladrão, socorro, chamem a polícia”, misturado com histeria. A colega do outro lado da linha ouvia tudo. Correu tão desesperadamente que não calculou a depressão da calçada. Um piso em falso, o tropeço, rosto e corpo no chão. Com o pé machucado, com a face e mãos machucadas, levanta-se rapidamente e continua a gritar, desesperadamente.
De tão fortes que eram os gritos, pessoas ouviram. Algumas chegaram a sair de suas casas. Uma senhora parou a garota: “o que foi?”; “um ladrão, um bandido está correndo atrás de mim!”. A senhora olha para trás e não vê ninguém, nenhuma alma viva na rua além da garota estridente. Havia sangue na roupa, no rosto e nas mãos. A senhora queria lavar-lhe as feridas, mas a garota não permitiu, queria chegar logo a sua casa.
Um policial apareceu. A amiga do telefone acionou a força militar. O policial a acalmou, perguntou se estava bem e pediu que descrevesse o suposto bandido. Ela não se lembrava do rosto dele. “Como assim não se lembrava, se tudo aconteceu há minutos?” Só disse que saiu correndo. Mesmo tendo olhado para trás, não viu nada. E nada lhe foi roubado. O policial não tinha nenhuma reação, fora apenas uma tentativa de assalto, e não havia nenhum suspeito por perto. Não houve, portanto, ação alguma.
No dia seguinte, a garota chega à aula com curativos. Conta sua aventura aos seus colegas. Quando perguntaram sobre o bandido; não se lembrava dele, não viu seu rosto, mesmo tendo olhado para trás. Os policiais não o encontraram. Por um instante, passou por sua cabeça se realmente houve a tentativa de assalto. Só a voz na sua cabeça, pedindo o seu telefone celular, uma voz que não saia de seus ouvidos. Ação e reação. Lei...
Passou-se uma semana. A garota volta do colégio pela mesma rua. Dessa vez, tinha feito uma prova de Português, sobre conjugação verbal. O fone nos ouvidos. Estava conversando com a mesma amiga. A rua como sempre com poucas pessoas, quase nenhuma. Era chegada a hora máxima noturna. Um vulto se aproxima dela. Dessa vez, ela percebe, despede-se da amiga, desliga o celular. O vulto se dirige a ela com voz trêmula: “não passe o celular, olhe para trás, grite e corra!”. Como um relâmpago, lembrou-se da voz e do pedido de semanas atrás. Conjugação diferente... Tratamento diferente... Ação e Reação... A lei...
No dia seguinte, a garota não pôde ligar para a amiga.
In: Ler-se(r), 2016, p. 45