Som

O som do cotidiano parece tocar uma velha e conhecida música. A TV do quarto ao lado harmoniza com o distante ladrar dos cachorros na rua, a campainha da pensão buzinando, portas que se abrem ao longo do corredor; Não enxergo mas escuto. Porta do saguão que desliza pela corrediça que outro dia mesmo quase que emperra sabe-se Deus o porquê. Sons que remetem memórias como imagens…. Sim, eu me lembro.

Dona Cida estava na cozinha, em meio a percussão das panelas, uma que tintilava quando corpo contra tampa jazia, outra que chiava por gordura face ao bife, as talheres batucavam, buzinava a campainha do outro lado no saguão e dona Cida nada ouvia.

“Se tocar de novo e eu não escutar seus passos pelo corredor, vou chamá-la”

Dito e feito, novamente o buzir e pela batucada culinária eu sabia; Dona Cida ainda lá se agitava toda, e o fulano da porta de certo aguardava ansioso, observando expectável momento qual viesse ali alguém permiti-lo adentro. Tudo isso eu via só de ouvir.

Como decente que almejo ser, levantei-me em interrupção de minhas atividades. De certo, palestrava alguém pela tela do computador ou jazia eu no leito escutando as vozes do pensamento, ou ambos, e dirigi-me até a cozinha; “ — Dona Cida, tem gente lá na porta”, eis que esta lançou-se ao dever. Oportunista que sou, aproveitei a brecha pra sair à fim de chocolates comprar.

Curioso entretanto foi quando na porta chegamos e ela me puxa a mesma pra esquerda, que desliza no batente “ — Tava destrancada, é que tava meio emperrada aí ficou dura de abrir”.

Veja que coisa. Não mais surpreendente que a quantidade de coisas que enxerguei só escutando.