Pingos de chuva na vidraça de meu jardim.
— Ding, dong, ding, dong… O relógio parecia gemer de frio. Bateu uma da manhã. Eu apenas escutava a valsa harmoniosa das folhas das árvores do jardim de meu apartamento. Moro no primeiro andar de um prédio de doze andares. Noite bem comum do mês de junho; mês que chove muito pelas bandas de cá. As noites são bem frias. Claro que não posso comparar estas noites frias com as do sul. Mas, hoje, parece ser um daqueles dias que a única coisa que você deseja é ficar em casa mesmo tendo festas acontecendo. O desejo de ficar agasalhado em uma poltrona reclinável foi maior, no meu caso. Nestas situações, uns escolhem tomar um copo de chocolate quente, ou tomar uma dose de aguardente; ou tomar uma dose de whiskey, ou tomar uma taça de vinho; vinho sem aqueles acompanhamentos importados e que muitos teimam em comer para soar “chique”. Penso que acompanhamento é o que deixa a bebida principal se sobressair e nunca aquele que força a permanência no paladar. Não nego: prefiro um bom café com leite de vaca e um pão bem assado com manteiga. É rústico, confesso. Mas, penso que é mais próximo do ideal. Eu escolhi ficar em casa porque gosto das noites de dias chuvosos. Elas me permitem escutar o silêncio. Por vezes, permito-me escutar a única coisa que quebra o sossego destes momentos: o barulho da chuva – pingos que resvalam nos vidros da janela de minha sala de bem-estar. Apenas a luz de um abajur antigo quebra a escuridão que teima em permanecer viva. A solidão do lençol de frio sob meu corpo aquece minha pele; mas o café com leite aquece-me a alma: essência de gotas de lembranças.
— Gut, gut!
A luz do abajur refletida na janela salienta ainda mais os pingos de chuva que mais parecem fazê-la chorar. Meus olhos embaçam com a fumaça quente de minha bebida, mas, nada está mais quente do que minhas lembranças. Agasalho apenas as melhores e as que valem a pena; as que me deixam feliz. A noite está muito fria para que frias lembranças sejam agasalhadas. Isoladas, estas apenas sevem para que eu permaneça em segurança. Reconheço os caminhos ruins que percorri quando revisito o frio de meu quarto triste. O silêncio persiste. Respingos são ouvidos quando resvalam na tela de vidro do portal de observações: silêncio quebrado apenas pelos gemidos frios e constantes da máquina efêmera do tempo.
— Tic, tac, tic, tac.
Penso que os segundos e as horas têm pernas longas; acho que também andam de mãos dadas anunciando que o tempo já passou: já passou, já passou, já passou e, quando bate a hora exata, ele grita: Fim! Fim! Fim! Nada foge a sentença do tempo, nem a atemporalidade dos pensamentos, mesmo os mais descoloridos. E não adianta ignorar lembranças porque elas são sombras iluminadas pelos nossos sorrisos. Se o relógio falasse, bem que os segundos e as horas poderiam ser gagos ou mancos, não acha? Só assim não seriam tão cruéis com tantos momentos bons que passam rapidamente. Por outro lado, há algumas ocasiões que ambos poderiam ter doze pernas, ou apenas quatro, desde que fossem iguais a um guepardo que captura e arrasta sua presa para longe; algumas pessoas poderiam ser arrastadas assim; algumas lembranças poderiam passar sendo arrastadas rapidamente para longe. Apenas ecoando vagamente algumas vozes.
— Que passem... Passar bem!
Lembro-me que, no fim da manhã de hoje, eu estava em uma fila para pegar um almoço em um destes restaurantes de comida caseira. Lugar bem famoso no centro da cidade. Era quase meio dia e o clima estava ameno e o céu já levemente nublado. Ventava muito! Não dá para comparar com os dias de calor intenso que temos no verão. O dia já estava dando indicações de mais frio noturno. Na fila, um distinto senhor parecia incomodado. Ele estava a duas pessoas depois de mim. Parecia bem impaciente com lentidão da fila. Olhou para trás e disse:
— Bem que poderíamos ter um relógio que acelerasse o tempo...
Claro que ele estava se referindo a possibilidade de fazer a fila andar mais rápido e pegar seu almoço. Pensando bem, ele estava, de alguma forma, certo. Seria muito cômodo, mas deixaríamos de olhar tudo com a admiração devida. Penso que até o sabor do tempo, por vezes, deixaria de ser doce; algumas vezes agridoce e, infelizmente, lembraríamos mais do azedume do que dos bons tempos de doçura. Não que haja diferença entre estes sabores. Para mim, todos são igualmente necessários para que o gosto da vida seja único. Contudo, nunca houve nada melhor que deixar o tempo passar lentamente e aproveitar tudo que ele pode nos oferecer. Aprender a observar tudo sem pressa. Parar e aguçar os sentidos: cheiros, texturas, sons, observar os pingos de possibilidades que caem teimosa e preguiçosamente em nossos vitrais. Um minuto já passou. Os pingos possuem formatos diferentes. Uns ficam e deixam marcas. Outros caem e passam rapidamente. O som das folhas completa a sinfonia da chuva. Mesmo estando agasalhado, ainda sinto que a noite está realmente fria e apenas pingos de lembranças permanecem aquecidos e escorrem pela minha janela. Vou descansar e deixar que as lembranças se acomodem e se completem, assim como se completam os pingos de chuvas na vidraça de meu jardim.