Cór'da Onça
“Meu destino é tocá gado”. (Verso entoado pelo peão Zé Bento na invernada do sogro, o boiadeiro João Rosa)
*Gabriel Emidio
O leitor urbano, não importa onde esteja, dificilmente ouviu falar no Cór’da Onça. E se acaso suponha que conhece de nome ou já foi até lá, tudo indica que estará se referindo ao Córrego da Onça do Catitó, entre Guaranésia e Monte Santo de Minas. Ali se localiza a Fazenda da Onça, antiga Itororó, comprada pelo Capitão Geraldo Ribeiro do Valle por volta de 1860. Ainda hoje é cortada ao meio pelo córrego que lhe deu o nome.
O leitor pode achar que se trata do Córrego da Onça lá de BH, que volta e meia transborda, por força de uma barragem rompida. Ou, também, o Córrego da Onça de Bela Vista de Minas, no eixo da BR-381. Há muitas localidades com essa denominação, Brasil afora – em português e nas línguas indígenas.
O fato é que Cór’da Onça grafado assim, sincopado e reduzido a três sílabas poéticas, só tem um: fica a três quilômetros da Praça São João Batista – marco zero da comarca de Itamogi, no sudoeste mineiro. Nos tempos de antanho, ali havia, sim, um córrego de água limpa, povoado de lambaris e bebedouro natural das onças desguaritadas das matas ainda fartas.
Se você pensa que o Cór’da Onça é uma água qualquer, lugarejo sem charme e pedigree, desprovido de história e órfão de tradição, engana-se. O conjunto de propriedades que forma o legendário bairro é relativamente pequeno, se comparado aos vizinhos Lagoa, Candinhos, Perobas e Gabiroba. Mas as primeiras casas datam de 1873, quando Francisco e Francisca Ferreira, primos em primeiro grau, se casaram.
Descendente direto dos pioneiros, o casal era muito benquisto e respeitado. Tiveram apenas três filhos – João, Maria Antônia e Ana. O primeiro era completamente sem juízo, mulherengo, beberrão. Casou-se, separou-se, torrou toda a herança, conheceu o gosto amargo da decadência e morreu vivendo de favores em casas de parentes.
Maria Antônia casou-se com o João Branco e tiveram 15 filhos. E Ana casou-se bem menina – 14 anos – com o fazendeiro Joaquim Emidio da Silva – um dos 17 filhos de Emidio José da Silva, dono de muitas terras, engenho, gado, café. Um homem de bem, que viveu 104 anos até 1956.
Ana o Joaquim Emidio, meus avós paternos, tiveram 11 filhos. Enfrentaram do jeito que puderam a crise de 29, perderam boa parte das terras, só ficaram uns vinte e poucos alqueires. Café e gado – sempre. Até o final dos anos 60, enquanto o casal viveu, a casa grande da sede se enchia de gente ao domingos - filhos, noras e genros; netos e agregados.
Homem franco, sistemático, dono de poucas letras, mas muito bem informado para a época e o contexto, Seo Joaquim Emidio era leitor e assinante do Diário de S. Paulo. O jornal chegava de tardezinha, no trem da Mogiana. E ai do neto que se esquecesse de pegar o exemplar no balcão do correio – tinha de voltar correndo ou galopando em pêlo o pangaré mais à mão.
Era consultado sobre diversos assuntos – inclusive políticos. Sempre discreto, Seo Joaquim Emidio votava na UDN, mas tinha prestígio também no PSD. Recebia todo mundo bem, ouvia mais do que falava e aceitava a corte dos mais sabujos. Os olhos azuis muito vivos temperavam a firmeza da voz e não raro a dureza das palavras. Nem sempre era tolerante. Encarnava o típico homem respeitado, num tempo em que fio de bigode não era só assunto para o barbeiro.
Cór’da Onça! Ali vivenciei mudanças cruciais de paradigmas, na passagem dos anos 60 para os 70. Em curto espaço de tempo a lamparina foi aposentada, com a chegada da luz elétrica. O carro de bois, o carretão, a carroça, a charrete, o cavalo de sela... o monjolo, o pilão, os apetrechos para fazer polvilho... Tudo isso ficou para trás com a morte dos velhos, entre julho e outubro de 1968.
O sítio remanescente da gleba original foi picotado e a gleba maior coube ao filho caçula de Joaquim Emidio, que comprou partes de alguns herdeiros. Hoje nossa mãe e dois irmãos são praticamente tudo que sobrou do Cór’da Onça. Aqui a história reminiscente dá lugar ao tempo presente. Em vez de contá-la agora, melhor vivê-la, saboreá-la. Gosto de voltar às origens fincadas nos carreadores de café e nas carreiras de gariovas esbeltas.
Nos meus encontros com lembranças de cenas e cenários do Cór’da Onça, a cantoria cacofatal do vaqueiro Zé Bento, referenciada na epígrafe desta crônica, remete a outro Bento – esse o tio mais querido, dono do sorriso mais luminoso desse mundo. Ele se foi no carnaval de 1991, deixando uma saudade proporcional à falta que ele faz. Herdeiro? Deixou, sim – é o nosso irmão Toin’ da Onça, um menino de 49 anos que foi grande companheiro do Tio Bento e com ele aprendeu tudo sobre a alegria de viver.
*Gabriel Emidio, natural de Itamogi e nascido no Cór’da Onça, é professor, jornalista e consultor em Marketing Político. gabrimidio@gmail.com