Pontos e vírgulas
Na calçada um velhinho, inválido da vista, a mastigar uma barrinha de cereal sem glúten, estira as pernas em direção ao expoente Sul; a alguns metros de sua vista cansada encontra-se um poste sendo regado por um cachorrinho manco; na rua asfaltada passa um carro preto, e para o contentamento do mendigo à porta da dona Maria Lavadeira, não é o da polícia: é um táxi, um táxi preto; dentro do carro expresso vão três amores e um motorista que dirige uma vida cursiva, sem tempo para amores nem cinemas; uma vida expressa, cuja epígrafe encontra-se no muro da rua X com o da Y, versículo 1º: “Sede fortes, e revigore-se o vosso coração, vós todos que esperais no ponto de ônibus.”; nas alturas um urubu faz seu voo lento e matinal até pousar na janela da senhora de oitenta e nove anos de idade e de incontáveis ilusões, de onde é expulso por uma rajada de água morna e muitas pragas; no rádio há imumeráveis preces e poucos bregas; hoje é domingo, logo se nota; domingo regulamentar, como são de praxe todos os domingos; dia de aumentar o sal da vida e dos enlatados; imundar-se de líquido e de humor; exagerar-se exagerada e excessivamente nas carnes gordas; ser solidário com o mundo, pelo menos o bastante para não o incendiar; um bom dia para não contestar; para bendizer o próximo; fazer as pazes com o quitandeiro e, para os abstêmios de álcool, ocasião para dose extra de suco de maracujá, que amanhã é segunda, ironicamente segundo dia da semana, que bem poderia chamar-se domingo, tal qual hoje, pois a diferença é mínima; afinal às segundas-feiras perfeitamente há velhos no balanço do tempo, cachorros mancos adubando postes, motoristas em seus táxis pretos apressados; fastios, filas nas padarias, fofocas nas calçadas; há, em resumo, o mundo e seus padroeiros, cheios de ecos e vazios.