MARÍLIA PÊRA
AVE MARÍLIA!
Nelson Marzullo Tangerini
Há muito penso em escrever algo sobre os bons momentos em que estive com Marília Pêra, minha prima, até porque ainda não assimilei bem sua partida. E acho que toda a nossa família sente exatamente o que sinto. Talvez escreva um livro sobre a atriz, se é que o que escrevo tenha alguma importância.
Tenho diante de mim uma foto de 1956, quando fazia 1 ano. Na foto, Sandra está no colo da irmã, enquanto estou no colo de minha prima Letícia. O fotógrafo oficial da família, Manuel Pêra, pai de Marília e Sandra, registrou este belo encontro.
Naquele momento, Marília dava seus primeiros passos para tornar-se a grande atriz que foi. Havia nela o DNA de Antônia Marzullo, nossa avó, Manuel Pêra e Dinorah Marzullo, seus pais, embora a atriz já tivesse sua própria maneira de pisar no palco e representar.
Depois da novela Rosinha do sobrado, creio, sua carreira começou a decolar e Marília já não podia mais voltar atrás.
Não sei por que visualizo aquela canção dos Beatles, She is living home, com o início de sua carreira. Talvez porque Marília corria atrás do que queria: ser uma grande atriz de teatro. Foi morar em Copacabana e teve de administrar sua própria vida. Parodiando uma das peças em que trabalhou, diria que não foi fácil vencer na vida sem fazer força. Porque ela trabalhou duro para conseguir chegar onde chegou.
Sem saber o que estava acontecendo, lamentava sua ausência em nossa casa. Mas ela nunca deixou de perguntar sobre todos nós.
Queria escrever o que sinto, o que não está nos livros biográficos da atriz; algo pessoal, algo que lhes fale sobre a saudade que sinto de minha prima. Porque penso nela quase todos os dias, quando assisto a uma novela, a uma peça, a um musical. E ainda pergunto aos deuses porque eles a roubaram de nós, deixando este vazio em nossa família e no teatro brasileiro.
Nas vezes em que estivemos juntos, mal pude expressar a minha opinião por ela ou a minha opinião sobre as peças, filmes ou musicais em que trabalhava. Ou ainda: sobre nossa família. Ainda que fosse minha prima, era ela para mim um mito, uma estrela que, com o seu brilho, me deixava mudo e sem palavras.
Acompanhava sua vida através de revistas e jornais e me orgulhava de ser primo da atriz mais completa do teatro brasileiro. Mas me irritava quando alguém me apresentava como “o primo da Marília Pêra”. E sempre questionava por que os deuses me colocaram numa família repleta de artistas.
Por muito tempo não sabia o que fazer de minha vida, porque era muito fechado, duro e tímido. Tentei fazer teatro. Desisti. Rabisquei algumas letras de músicas com amigos, formei uma banda, onde cantava e fazia backing. Desisti de tudo. Fiz faculdade de jornalismo e fui atuar em revistas e jornais alternativos. Depois, resolvi fazer faculdade de Letras e me tornei professor de Língua Portuguesa e Literatura. Seguia por outro caminho, tentando fugir, talvez, de mim mesmo ou da responsabilidade que tinha, de estar dentro de uma família repleta de estrelas.
Escrever seria a minha saída. Era uma maneira de viver a minha vida, minha solidão, meu isolamento, meu conflito.
Uma vez, quando passeava, pela praia, na Barra da Tijuca, encontrei-me com Ricardo César Pêra da Graça Mello, seu filho. Ele queria que eu fosse até sua casa, no Joá, e eu não queria ir. Marília ensaiava para uma peça e eu não queria atrapalhá-la. Ricardo insistiu. Fui até lá. Comemos alguma coisa e fomos para a sala conversar. Sabendo de minha presença em sua casa, Marília saiu de seu quarto e veio falar comigo, com um texto na mão. Pediu-me desculpas por não me dar atenção e voltou para o quarto, onde lia um texto.
E foi assim a nossa vida. Vivíamos em mundos diferentes. Talvez por erro meu. Ela, nas telas ou nos palcos; eu, no meu solitário mundo das letras.
Lamento muito não ter me aproximado dela, que, já no final da vida, estreitou uma amizade maior comigo e começou a ler o que eu vinha escrevendo, como meu livro “Nestor Tangerini e o Café Paris.
De 2012 em diante, estivemos muito próximos. Venci a minha timidez e pude expressar meu ponto de vista e mostrar para ela o que andava escrevendo. Queríamos fazer um livro juntos, contendo fotos de nossa família contando a nossa história.
Em 2014, pude ver de perto o projeto de nosso livro. Marília pediu para que o motorista fosse me buscar em casa. Almocei com ela. Vi as fotos sobre sua mesa de estar. Desculpou-se. Tinha de sair para dar uma entrevista no Teatro Ginástico. Antes de sair, me perguntou em que ano nossa avó, Antônia Marzullo, trabalhou em Toda nudez será castigada, peça de Nelson Rodrigues, porque ela queria citar a avó na entrevista. Naquele momento, eu senti que meu trabalho como memorialista tinha alguma importância ou relevância. E ela se retirou para a entrevista.
Ainda nos encontramos duas vezes mais: no Centro Cultural dos Correios, numa peça sobre Callas, dirigida por Sandra, e no Teatro da Gávea, quando Marília dirigia uma peça, também sobre Callas.
Era uma pessoa séria e imprevisível . E eu me surpreendi, certo dia, com um e-mail seu, após ler um livro meu, dizendo: “Nelson, li todas as crônicas e achei tudo muito bonito. Você escreve um português perfeito, herança natural do tio Tangerini. Parabéns pelos belos sentimentos”. Posteriormente, publiquei seu texto na orelha de meu livro O professor e o poeta – Cartas de Carlos Drummond de Andrade a Nelson Marzullo Tangerini.
Vários momentos ficaram em minha mente. Um deles, quando o corpo de minha mãe descia para o leito derradeiro, no Cemitério São João Batista. Ela homenageou meu pai e minha mãe, cantando a valsa Dona Felicidade, de autoria de Benedito Lacerda [música] e Nestor Tangerini [letra].
Talvez escreva um livro mostrando a minha visão sobre Marília; talvez para demonstrar todo o meu carinho e toda a minha admiração que tive e tenho por ela; talvez para diluir a dor que sinto durante todos esses anos após sua partida; talvez para tentar resolver esta distância que eu criei entre mim e ela, causada pela minha timidez.
Ave Maríla!