Crônica: Quando a moto é sentimental
Estou estrupiada.
 
Não sou de reclamar, mas dessa ele foi longe demais.
Já andei muito na minha vida e já me sinto cansada. Nasci em mil novecentos e noventa e seis. São 23 anos que queimo pneu e gasolina. Dá pra imaginar que devo mesmo ter idade de reclamar.

Isturdia ele não tinha o que fazer e inventou de subir uma serra desgraçada de alta. A serra da Assunção. Pra quem não sabe Assunção é um distrito de Itapipoca metade da altura entre o céu e a terra.

Quase morro subindo aquelas ladeiras com ele no espinhaço. Minha biela chega piava de tanto esforço e meu motor quase incendeia de tão quente.

Ele gosta muito de aventura, mas esquece que não aguento essas coisas.
Ontem, pasmem! Inventou de ir de novo à serra e desta vez levou a mulher dele. Subir a serra com ele já é bem desagradável, imagina com um peso extra! Ai como eu sofro! Pensei que ia apagar no meio de uma ladeira. Só de segunda, passa pra primeira. Na terceira eu enguiava e reduzia pra segunda, apelava uma primeira e nesse ritmo ia eu ladeira acima, parecia mais uma jumenta estrupiada. Além das ladeiras as terríveis curvas. Eles se divertindo às minhas custas. Claro. Não iam com nada nas costas. Eu era que ia debaixo desses dois folgados.

Até gosto desse desgraçado, mas ele está perdendo a sensibilidade comigo. Era mais romântico e mais sensível. Agora o romantismo dele é todo pra ela. A esposa. Sempre foi, mas está exagerando. Sei pra quê isso.

Devia namorar com outras por aí, mas não. Fica bitolado só com esta. Coisa antipática!

Finalmente chegamos na tal BICA DA CANOA.
Começaram tirar fotos na entrada. Fotos de todo jeito e de vários ângulos. Eu, doidinha pra tirarem uma foto minha ou comigo, mas nada. Como um égua, fui encostada num pé de muro e fiquei lá sem ver um vivente enquanto eles se divertiam comendo e se banhando. Impressionante como a gente é besta e não é reconhecida.

Mais ou menos uma hora e meia, lá se vem os dois pombinhos, pra não dizer, as duas desgraças. Até fiquei aliviada e feliz porque já íamos pra casa. Tão logo montaram em mim, me conduziram ladeira acima sentido Uruburetama. Ah, gente. Deu vontade de dar coices e patadas. Desejei muito ser uma égua só pra derrubar os dois. Com maior prazer. E tome ladeira pra eu subir com essas duas cangalhas. Olha. Ontem eu estava num dia daqueles!

Pararam debaixo de um nim, árvore africana, e me deixaram sozinha e disseram nada. Desceram uma ladeira e sumiram. Não imagino o que viram, nem o que fizeram e passaram mais de uma hora pra lá. A besta aqui, feita uma jumenta de novo debaixo da árvore. Crueldade! As pessoas que passavam por mim me olhavam com desprezo, pois bem velha e a tinta largando os chaboques. Este desgraçado nem coragem de mandar me pintar, tem. Me prometeram envelopar meu tanque, mas são igual políticos em campanha. Promessas, apenas promessas.

Retornaram, finalmente, umas duas e meia da tarde. E tome mais bica. Agora me deixaram no meio do sol e foram se refrescar. A abestada aqui quem leva sol nos lombos e eles quem se refrescam. Ô injustiça difícil de tolerar. Mas, não tendo outro jeito, é o jeito.

E finalmente voltamos. Ouvi ele dizer que tiraram umas 140 fotos. Ah, infelizes! Não saio em nenhuma delas. Pode um negócio desses? às vezes queria ser aposentada. Viajar é bom, mas quando a gente é abusada fica estressante.

Na descida até que gostei. Pouca aceleração. A gravidade se encarregava de me puxar e eu achava era bom. Mas, a raiva não passava.

Gente. Me sinto desvalorizada e descuidada. Mas, o que pode fazer uma moto de 23 anos de idade? Quem teria interesse em mim? Outro desgraçado pra me judiar. É. Porque pra situações difíceis não colocam as novinhas. As novinhas são motos de praça. Cão dos infernos.

Meu motor está melando e sangrando óleo. Faz tempo isso e ninguém se importa. Vivo perdendo lubrificação. Estou mesmo no fim da vida.
CARLOS JAIME
Enviado por CARLOS JAIME em 26/07/2019
Reeditado em 26/07/2019
Código do texto: T6704797
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