O armagedom

Assoberbado com o acúmulo de pequenas tarefas assumidas e proteladas por dias sem fim, como esta escrevinhação que aqui se faz, por hora o mais premente dos meus quefazeres, no afunilamento do tempo para a entrega. Tento debalde me concentrar numa ideia, a cabeça girando numa profusão de sons e imagens flagradas nas últimas horas por todos os meios nas mais variadas mídias. Nada de acalentador. Por um instante me parece que o mundo está se desintegrando num cataclismo sem precedentes. Prazos que se esgotam, contas que vencem, o controle da pressão arterial, enfim, os pequenos suplícios cotidianos parecem perder significância diante de minha mais recente constatação. O mundo acabou. Talvez minha perplexidade diante desse fato seja fruto da necedade que não me permitiu entender o que estava previsto em todas as profecias. O mundo acabou! O mundo que me apresentaram há mais de meio século, para o qual pais e mestres me prepararam, ruiu tristemente. Caminho por entre os escombros sem muita esperança de sobreviver à realidade que ora se apresenta.

Sou interrompido no meio dessa reflexão pelo sujeito que irrompe à porta do ateliê com um saco às costas: — O senhor não quer me comprar um litrão de leite da roça? Não esperou resposta. Começou uma interminável explicação sobre a forma como cria as suas vacas, como as alimenta com o silo produzido por ele mesmo com capim de suas próprias capineiras, fez uma explicação detalhada sobre vermífugos, falou do seu curral cimentado e da destinação que dá ao leite nos demais dias da semana. “Aí, na quinta, ponho o leite nas garrafas pet, saio das Zareia bem cedim no onz da São Cristóvão”. Continua o seu discurso imperturbável, sem olhar no meu rosto, cônscio de que eu estou apreciando, e certo de que efetuará uma venda. Tive a indelicadeza de interrompê-lo: — Vou querer uma. Ele depõe no chão o pesado saco carregado de garrafas, retira uma e me entrega. Cinco reais. Dou-lhe uma nota de vinte, ele abre a carteira, não tem troco entre as inúmeras notas de cinquenta, mas dentro de um escaninho da mesma há um patuá de cédulas de cem, pelo menos umas vinte, presas dentro de um saco plástico que ele vai desenrolando, lá no meio daquele bolo de graúdas ele encontra uma de dez e outra de cinco para me fazer o troco.

Me ocorre então avaliar a aquisição. Leite visivelmente gordo, acondicionado num frasco de refrigerante, que depois de cumprir aquela sua primeira finalidade tinha se prestado a conter um outro produto a julgar por uma etiqueta com a informação: CACHAÇA P*** e um número de telefone. — Acho que vou gostar desse leite. Digo. O sertanejo, muito simpático e sem o menor sinal de pressa, começa nova elocução sobre o processo de fabricação de queijo e como aproveita o soro para alimentar os leitões, que “vesprando” as festas de fim de ano terão bom “cumércio”, faço os cálculos, falta ainda o tempo de uma gestação humana para as festas do consumismo e o matuto do patuá de notas de cem já planeja um jeito de aumentar o seu bolo. Ele ainda discorre sobre a mosca do chifre, o bicho-de-pé, o ataque das abelhas arapuás às flores da laranjeira, o mel da jataí que é muito caro em decorrência da raridade, que o bichinho é menor que o beiço de uma pulga e por isso produz muito pouco...

Fico aturdido, sem saber como interagir. A maioria dessas coisas é completamente estranha para mim, mas o fazendeiro não tem conhecimento disso, também não faz qualquer diferença, quer apenas apresentar-me o seu mundo, que ainda não acabou, que subsiste numa realidade paralela. Sou salvo pela vizinha que chega à janela. — Bom dia, minha senhora! Leite da roça?

Volto ao teclado com o espírito mais tranquilo. Recordo a conversa do psiquiatra que recomenda paciência para com as emoções. “Elas passam. Segure por um tempinho seus ímpetos e tudo estará resolvido”. Tento retomar a linha do raciocínio e terminar o meu texto, já agora é a figura do matuto que me tira a concentração. Quer saber? Vou é ferver aquele leite.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/07/2019
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