Crônica de apartamento
Acendeu a luz… E não havia ninguém. Se entristeceu. De tudo que havia no mundo, nada lhe dizia respeito. Era como se, essencialmente, nem a roupa do corpo lhe pertencesse.
Tudo tão opaco quanto a parede do quarto. Se levanta, vai até a cozinha, escova os dentes, se olha no espelho, arruma o cabelo. Nada diferente. Tudo normal. Tudo péssimo.
Os sons da rua lhe parecem distantes como o brio de outrora, coisas efêmeras e raras como o tempo.
A bicicleta passando pela poça de água, o ônibus chegando pela última vez. Perdeu. Foi pra casa a pé, e não disse uma só palavra no caminho.
Não jantou. A comida não tinha gosto de nada. A vida não tinha gosto de nada. Permaneceu a madrugada inteira acuado na janela, ouvindo o barulho dos grilos e da chuva.
Foi assim durante alguns dias, depois piorou. Chegava, acendia a luz, ia pra cozinha, escovava os dentes vagando pela casa, como que em busca de algo, um cachorro… um demônio… algo minimamente palpável. Se olhava no espelho, arrumava o cabelo… quando via o redemoinho, desistia.
Dava três garfadas no arroz, com cara de alojo de bebê. Ia pra cama sem comer e virava a madrugada pensando no trabalho.
O sol raiava e ele não via, pois havia perdido há muito a noção de tempo e há muito tempo não vivia o dia.
As coisas que fazia eram parte de uma rotina tediosa e sem prazeres. Batia nas teclas do computador o dia inteiro. Quando se cansava, estava na hora de ir pra casa.
Mas houve um dia em que foi diferente. Ao invés de bater nas teclas, ele dormiu, a tarde inteira, como nunca havia feito em quinze anos de trabalho.
Seu chefe o repreendeu, mas ele não sabia o que dizer. Foi demitido. Pegou um Uber, chegou em casa mais cedo, preparou um banho quente, comeu bife acebolado…
No fim da noite, vestiu o pijama e se deitou. Queria um livro pra ler, mas não tinha. Pegou as bulas dos remédios e franziu a testa até enxergar as letrinhas. Não conseguiu.
Andava pelo apartamento, atônito, lavando o rosto compulsivamente, explorando a dispensa, os álbuns de família, ligando e desligando as luzes.
Estava feliz. Redescobria, pela última vez, o teto e o mundo em que vivia. Lá fora havia pássaros, luzes, carros, prédios, fumaça e todas as outras coisas que ele via debruçado na janela por horas e horas, até o anoitecer.
De repente, fechou os olhos e sentiu a brisa fria. Lhe vem à mente um pensamento um tanto estranho: morreria se caísse dali?
Queria mesmo saber. Pulou… Morreu. No dia seguinte, um faxineiro achou o corpo putrefato. Investigou-se e chegou-se a identidade do morto: Otávio Martins; 39 anos; solteiro.
Ninguém foi ao enterro.