Tempo

Ele tinha, a julgar por sua fisionomia, os cabelos grisalhos, as linhas de expressão adquiridas e dadivadas, uns setenta anos, com margem de erro de três pontos para mais ou para menos. Eu, em pé e sonâmbulo, estava na fila do pão de uma padaria que fica na esquina de uma rua guarnecida por vários cães famintos e raivosos; ele, sentado e acordado, a balançar-se em sua polifônica cadeira de balanço, creio que nos vigiando ou mesmo gastando tempo e as retinas ao redor daqueles metros quadrados de cimento e aço. Ambos, ele e eu, esperando o tempo passar, numa tarde que se alongava num alongamento lento e tardio; eu havia esquecido o celular em casa e, como se presume, sem o auxlio desse companheiro indispensável ao homem moderno, necessitava de lenitivo capaz de me aproximar do início da fila e encurtar as horas. Foi então que a cadeira de balanço e seu ocupante me atrairam.

Afinal, quantos anos tinha aquela cadeira? Anos ou meses? Pela aparência fisica, pelo colorido e sinfonia, julguei-a ainda adolescente, dessas resistentes a pesos e medidas desproporcionais. Parecia não se aborrecer em acomodar aquele senhor de seus, vamos lá, noventa e alguns quilos. Provavelmente obtida a preço módico, disposta a sol e chuva, resistira bravamente e de sua recente vida, evidenciava-se um gozo carregado e tenaz de harmonia e alinho. Aparentava-se jovem e feliz, com muito tempo ainda a gastar e balanços a empreender, ao contrário de seu ocupante, no qual se notava ruga de indiferença para as urgências do agora e ainda mais para as de amanhã.

De seus supostos setenta anos, a pergunta que me veio à mente foi: como ele havia gastado esse tempo? Com a ajuda de minha calculadora mental, que infelizmente não é muito de cálculos, fui às contas. Cheguei à conclusão de que, se dormiu o recomedado pelos especialistas, isto é, oito horas diárias de sono, consumiu um terço dos setenta anos. Ou seja, despendeu na cama, no sofá, no chão ou equivalentes uns vinte e tantos anos. Somando-se a essa soma as regulares, pensando positivamente, oito horas diárias de trabalho, que dariam mais uns dez anos de vida; as horas à frete da televisão; as horas derramadas na esteira ou na pista em busca de quilos a menos; as horas gastas fazendo sexo (ou mesmo amor); as horas comendo; as horas descendo escadas ou subindo elevadores; as horas usadas no trânsito; as desperdiçadas no banheiro; as horas dissipadas a olhar sua mulher e seus pecados percebe-se que é possível que lhe tenham valido quase toda a vida ausente de si.

Essa constatação me levou a outra, a meu ver, igualmente terrível: aquele senhor de aparente setenta anos talvez tenha vivido menos que a honorável cadeira que o balançava e o tornava visível em uma tarde chuvosa, ambiente fechado a concreto, aço e câmeras, próximo de uma fila perfilada na indiferença ao tempo e ao espaço. Dessas filas próximas ao fim dos tempos, semelhantes às tão comuns em prédios de muitos andares, igrejas de Cristo, restaurantes de comida expressa etc. e tal.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 20/07/2019
Reeditado em 20/07/2019
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