NITERÓI E A POESIA SATÍRICA EM LÍNGUA PORTUGUESA
LILI LEITÃO LIA BOCAGE
Nelson Marzullo Tangerini
Dois sonetos me deixaram noites sem dormir e a imaginar uma possível admiração literária do poeta neoparnasiano brasileiro Luiz Leitão pelo poeta árcade português Bocage. Porque há muito me sobrevoa a mente a tese de que Antologia Poética, Sonetos de Bocage, era um livro de cabeceira daqueles poetas satíricos do histórico e lendário Café Paris, de Niterói, anos 1920, antiga capital do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Leitão e Nestor Tangerini. Leitão, inclusive, chegou a ser apelidado de Bocage fluminense. O título se deve, também, em função de seu livro de sonetos pornográficos Comidas Bravas, desaparecido, com prefácio hilariante de seu inseparável amigo Nestor Tangerini, que o assina com o pseudônimo Febrônio. Em Niterói, cidade fundada pelo Cacique Arariboia, conta-se, entre seus diletos leitores, que este livro foi realmente escrito e que foi destruído pelos conservadores. Brasil dos Reis, outro poeta parisiense, em conversa com Luiz Antônio Pimentel, relatou que foi ele quem datilografou o mal falado livro e o prefácio. Os poetas parnasianos - e os neoparnasianos ou 2ª. fase do Parnasianismo e resistência à poesia moderna – cultuavam, como se sabe, a poesia clássica e neoclássica.
Eis aqui, portanto, em ordem cronológica, o célebre soneto que abre o livro de Bocage:
“Retrato próprio
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste da facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento”.
Bocage
E eis aqui o soneto de Luiz Antônio Gondim Leitão, o nosso Lili Leitão, também autor de Teatro de Revista [revisteiro, como ele próprio se define], que abre seu modesto livro Vida Apertada, de 1926, reeditado em 2009 pela Editora Nitpress, de Niterói:
“EU
Nasci em Niterói, lugar ordeiro,
Terra de Arariboia, santa e benta,
No dia vinte e cinco de janeiro
Do ano mil oitocentos e noventa.
Não sou moço, pois vou para os quarenta;
Também não sou nenhum velho cangueiro.
Vivo da pena, minha ferramenta:
Sou poeta, burocrata e revisteiro.
Rabichos, tive um só, pela Chiquinha;
Dinheiro, tenho visto uma porção,
Na algibeira dos outros, não na minha.
E, assim, lutando, sem tombar de borco,
Hei de ser sempre o mesmo Luiz Leitão,
Leitão que nunca há de chegar a porco...”
Luiz Leitão
Manuel Maria de Barbosa du Bocage foi um poeta satírico português, também considerado um autor do Arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico, que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.
Nasceu a 15 de setembro de 1765, em Setúbal, Portugal, vindo a falecer a 21 de dezembro de 1805, em Lisboa, Portugal.
Luiz Antônio Gondim Leitão, que nasceu em Niterói, RJ, a 25 de janeiro de 1890, e faleceu na mesma cidade a 4 de abril de 1936, era conhecido, também, como Lili Leitão. Poeta e dramaturgo brasileiro, publicou sonetos humorísticos sob o pseudônimo de Bacorinho e Manuel da Beira Alta, entre outros. Autor do livro Vida Apertada, já citado acima, também escreveu poemas eróticos, como os que foram publicados em seu último livro, Comidas Bravas, talvez perdido para sempre.
Ao saber da morte do amigo de poesia e de copo, Nestor Tangerini, em meio à dor, dispara uma trova satírica, bem no estilo de Lili:
“Quando o seu corpo à cova baixo,
pleno de cana e de graça,
um verme aos outros gritou:
- Moçada, hoje temos cachaça”.
Muitos críticos, intelectuais e estudantes de literatura brasileira, por pedantismo, bairrismo, ou maldade – talvez estejam ainda embriagados pela poesia proposta pela Semana de Arte Moderna de 1922 -, não se debruçam sobre a valiosa obra deixada pelos magníficos poetas neoparnasianos [ou 2ª. fase Parnasiana] do histórico e inesquecível Café Paris.
Aqueles jovens poetas que balançaram Niterói, no início do século XX, merecerem ser incluídos entre os grandes da literatura lusófona. Basta atravessar a Baía de Guanabara – de barco ou pela ponte.