Sobre Caos e Folhas
É cedo, é frio, mas contrariando o bom senso da preguiça há uma senhora na calçada varrendo a caótica camada de folhas que cobre o pavimento Inevitavelmente observo a cena. Não por indiscrição, mas por hipnose: o barulho das folhas secas rolando umas sobre as outras é um chamariz irresistível.
E a cena ganha algumas notas de complexidade, já que é possível escutar, ao fundo e baixinho, um rádio, que toca desses sertanejos antigos e doídos e que só tocam antes das sete da manhã.
Outros atores entram em cena. No quintal, atrás, há um boxer. Contemplativo, vigia a rua com o traseiro sentado num tapete feito de retalhos coloridos. Mas seu olhar empapuçado é cingido duma certa tristeza, e pode-se adivinhar um cão abalado por sérias questões existenciais. Próximo, em cima do muro, há essa bola de pelos amarela, um gato que fez-se ninho de si mesmo. Também tem um quê contemplativo, mas muito mais tranquilo: o olhar é semicerrado no melhor estilo Buda. Não fosse o farfalhar das folhas secas e o rádio chiando, se escutaria o ronronar meditativo.
Mas é preciso voltar à senhora porque nossos olhares se cruzaram. Tensão. Ela se retesa um pouco e diminui o ritmo das varridas. Deve ser o escuro da hora, ou minha cara semi-barbada, pois ela fica um tanto desconfiada com o homem que observa seu pequeno reino. Tento fazer as pazes com um ensaio de sorriso:
- Bom dia.
- Bom dia!, diz ela, repentinamente minha amiga sorridente.
- Quanta folha, hein - digo, a título de explicação da encarada.
Ela para de varrer, olha para as calçadas cobertas por um caos de matéria orgânica avermelhada e em decomposição. Mas, um tanto orgulhosa, emenda:
- Ah, mas é bonito, né?
Ela retoma a varreção, e é minha deixa para continuar meu caminho. Aos poucos o farfalhar das folhas some, e já não escuto mais o rádio. Ainda é cedo, ainda é frio, e vou encontrando outras calçadas cobertas pelo caótico tapete avermelhado. Porém, agora, com essa ideia insistente:
- Ah, mas é bonito, né?