Márcia Kaplan, no seu sétimo dia
Márcia Kaplan, já por duas vezes, teve sétimo dia: o primeiro, em vida, depois de ter nascido; o segundo, depois de ter morrido, ocasião na qual publico esta crônica em sua homenagem. Mulher esplêndida como uma flor de mandacaru; de alva à rubra, avermelhou -se de tanto sangue a aumentar-lhe a pressão, até morrer do coração. Bela, como uma flor de cardeiro, como o matuto chama a do mandacaru. Dizem as abelhas que nela há doçura de mel. Lamento que, no mandacaru, essa flor dure apenas uma noite, contudo defendia-se com espinhos contra quem tentasse arrancá-la das suas origens. Mas, diferente dos espinhos, a flor sabe sorrir, a agradar qualquer perdão. Diziam que ela era sensível, porque, do palco à cozinha, tinha adquirido afabilidade da música do companheiro, compositor Maestro Kaplan.
Pedra dos “Stein” (bach), Márcia continua polida, mais afável do que nunca. A lhaneza do trato, que tinha em vida, acentuou-se depois da morte. Morreu!? Sente-se um querente desejo de que ela não tenha morrido. Essa crescente vontade junta-se à fé, força de levantar Lázaro do túmulo, ressuscitando-o, de corpo e alma, para voltar a ser como antes entre nós, e melhor, uma flor de cardeiro sem espinhos, ou, se com espinhos, no céu, os espinhos não furam, porque ninguém desrespeita os jardins dos semiáridos paradisíacos. E, sobretudo, porque, naquela perfeita república, a cidade é, como diz Santo Agostinho, uma cidade de Deus, contrapondo-se à cidade dos homens. Nessa nova cidadania, Márcia não sofrerá constrangimentos como estamos a padecer, neste país de absurdos e de desatinos políticos. Neste sentido, reitero aos amigos e às amigas a consolação dita por seu irmão Bruno: “Ela precisava descansar!” Partiu, deixando sua jovialidade com o filho João, e sua beleza, com a esplendorosa filha Ana Elvira. Bem é assim a vida na família das cactáceas.
Espontânea! Adorava nos contar proezas e tiradas do seu pai Doutor Isaías Silva: de que jeito foi educada e como deveria ser “bem-educada”, mesmo em ocasiões adversas ou, se necessário, metamorfosear-se de flor a espinho. Márcia era assim, alegre presença onde estivesse, não era uma designação comum no universo das nossas amizades. Escrevo porque sei que ela está lendo, pois nunca deixou de comentar minhas crônicas e elogiá-las acima do merecimento do modesto cronista e sem temer o que chamava de “crítica invejosa”. Sabia como ninguém o trajeto dos meus trabalhos, das minhas prestações de serviço, a estimular-me: “Por onde você passou, realizou e deu certo!” Acreditava no que ouvia porque ela era sincera e amiga. Admirava seu espírito de luta, sorrindo com doçura, mas pronta para a briga; se sozinha, marchava com a coragem de um batalhão; se perdesse a batalha, chorava contra nossas fraquezas ou pela possibilidade de novamente lutar. No combate, na derrota ou na vitória, Márcia era fenomenal.
Sempre tive curiosidade de saber seu quotidiano. Encantava-me o relato das suas coisas surpreendentes, sobretudo quando narradas por ela própria. Saberemos como isso prosseguir, pois Márcia imprimiu sua memória e sempre será fácil seu retorno. Nesse sétimo dia, por decisão própria, queimada, já se igualou à vontade de Kaplan, no crematório. Cumpriu literalmente o “memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”, o que os anjos traduzem: “lembra-te, homem, que és pó e em pó hás de tornar”. Com certeza, suas amigas e seus amigos, em procissão com a família, semearão esse seu pó para que, juntado ao de Kaplan, na terra universitária onde ensinaram, fertilize duas belas e humanas árvores a propiciarem-nos sombra, a alimentarem-nos com seus bem-aventurados frutos. Todas as vezes que passarmos por aquele bosque, sentiremos a sensação agradável da fragrância dessa flor e desse casal amigo. Convém lembrar, no Diálogos dos Mortos, Fontenelle: “É verdade que não se pode encontrar a pedra filosofal, mas é bom que a busquem”.