Os sapatos

Os sapatos que estou calçando hoje, em dezembro de 2016, são deveras peculiares. Não os sapatos em si, mas a sua história. Cada vez que os calço relembro essa história, e ela me comove.

Comprei-os há mais de dez anos, numa daquelas lojas alternativas da Rua Guaicurus, na Lapa, em São Paulo, que vendem roupas, calçados e acessórios muito ao jeito de quem gosta do campo, das lidas rurais. Escolhi aqueles sapatos por vários motivos: o preço era bem justo, compatível com o produto, e não com alguma badalada marca; o formato era bem largo, não apertavam meus dedos; eram de um tipo de camurça, um couro macio que também não submetia meus dedos e outros ossos do pé a torturas e apertos externos; e, talvez o motivo principal, tinham aquele solado de um látex granulado muito macio, comercialmente chamado de crepe, que fazia o pisar tornar-se um toque de suavidade sobre o piso, uma carícia para a planta dos pés. Mas os sapatos tinham outras qualidades, que só vim a perceber depois.

Embora não fossem propriamente elegantes, eram muito confortáveis e portadores até de um certo estilo pendendo para o rústico e para o irreverente. Aqueles sapatos, quando ainda bem novos, acompanhavam-me a quaisquer situações, fossem elas sérios compromissos de trabalho, festas e reuniões sociais, aulas e passeios dominicais. Usava-os sempre com admirável apreço pelas suas qualidades, os meus pés agradeciam-me aquela escolha que os poupavam de suplícios e os deixavam bem à vontade.

Mas logo o ponto fraco dos sapatos revelou-se: aquele solado de crepe tão macio era pouco resistente. Começou a deformar-se e a desfazer-se. Procurei em muitas lojas e sapatarias, não havia quem tivesse daquele material para reposição. E olhe que moro numa cidade, Ponta Grossa, com muitas lojas que se dedicam a artigos destinados ao uso na zona rural e na pecuária, um legado de suas origens tropeiras.

Depois de muita busca infrutífera, desisti de encontrar o solado de crepe. Destinei os sapatos para os trabalhos de campo, como de praxe faço com os calçados que vão ficando velhos, desaconselhados para situações que demandam alguma cerimônia. E passei a utilizá-los nos muitos trabalhos de campo em locais bem inóspitos a que a profissão de geólogo me conduz. Eles desgastaram-se sobre lajedos ásperos, encharcaram-se ao atravessar arroios, enlamearam-se chafurdando em brejos, esturricaram ao sol e empoeiraram-se em longas caminhadas por veredas ensolaradas. Nestas sofridas lidas, nunca deixaram de garantir a segurança e o conforto de meus pés.

Então me dei conta da qualidade que não havia percebido antes naqueles sapatos. Embora o solado de crepe estivesse a desmanchar-se, o restante era extremamente durável, tinha sido confeccionado com muito zelo. Depois de cada retorno de trabalho de campo, quando tinha de lavar os sapatos debaixo de muita água, notava como eles pareciam ignorar as tantas atribulações a que estavam sendo submetidos. Suportavam-nas muito dignamente, junto com a tristeza de terem sido rebaixados de sapatos sociais a sapatos de campo. Embora eu lhes fosse muitíssimo grato por preservarem meus pés naqueles árduos trabalhos.

Quando tive oportunidade, voltei a procurar por aquela marca de sapatos nas lojas da Lapa em São Paulo. E por muitas outras lojas. Não os encontrei, os lojistas só diziam que não os tinham recebido mais. Achei outros modelos, de outras marcas, ainda largos, de camurça e com o solado de crepe, mas de qualidade muito inferior. Procurei na web, não encontrei nada que me remetesse à fábrica do original, cuja marca ainda aparece gravada na camurça do calcanhar.

Então me dei conta: claro, nesta nossa civilização da obsolescência programada, um calçado durável é algo que está na contramão do consumismo a que as fábricas devem curvar-se, sob pena da falência. Pareceu-me ser bem esse o caso de meus apreciados sapatos.

Tomei então uma outra providência: na sapataria, pedi que refizessem o solado, trocando a crepe deformada e desfeita por um outro material disponível, uma borracha não tão macia, mas aceitável.

E desde então meus velhos e estimados sapatos voltaram a ser meu calçado social e de momentos de descontração. Agora os uso com uma satisfação adicional. Além de quase tão confortáveis quanto os originais, têm uma bela história a contar. Já me conduziram por rincões ermos e remotos, e voltaram comigo ao conforto e segurança da vida na cidade. E, além disso, são um símbolo de resistência ao consumismo impiedoso e desenfreado de nosso mundo atual.

Quanto aos sapatos análogos mas de qualidade muito inferior, depois de algum uso passaram a ser meus sapatos de campo. Confortáveis, mas não tão seguros nem duráveis. E não tão estimados.

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).