O bastão de bambu
A Laura e o Lucas (meus filhos), ainda crianças pré-adolescentes, adoravam acampar no Capão das Pombas, no caminho para os Alagados, onde havia o lajeado de águas límpidas, os pinhões, os nós-de-pinho para a fogueira crepitante das brincadeiras de escoteiros no esperado cair da noite, o borrão de estrelas no negrume do céu do sertão.
E nas manhãs frias e enevoadas pela cercania da escarpa saiam a perambular pelos campos próximos ao capão. Para os lados da fenda no arenito, todo quebrado por aquelas bandas, havia um bambuzal, e um dia encontraram um bambu tombado, arrancado que fora pelas últimas enxurradas. E esse bambu era muito especial, pois a parte da raiz que se preservara parecia a cabeça de um grande pássaro, uma ema, ou algo assim. Dava um belo bastão, ou ainda melhor, era bem um cajado, daqueles com os quais se abrem os mares, ou se conjuram relâmpagos, ou se dobram os joelhos do mais valente guerreiro.
Laura, mais velha, logo tomou posse do extravagante achado, e o fez seu companheiro inseparável. Naquele e em todos os acampamentos ao longo da infância e da adolescência de escoteiros. Amavam o escotismo, porque assim sempre podiam acampar, dormir em barracas no mato, fazer a própria comida, ainda que um arroz empapado e com areia, fazer jogos inocentes à volta da fogueira até altas horas, o céu a cintilar de estrelas, e o temor da escuridão da entranha da mata e das aparições que por lá perambulavam. E nem era preciso tomar banho ao final do dia, por mais suarento que ele fosse, a barraca cheirava a mato, a terra, a fogueira.
De volta à casa, o bastão tinha seu lugar certo no quarto da Laura, ao lado das bandeiras da patrulha. E quando iam acampar, os irmãos sempre juntos, lá ia também o bambu com jeito de ave, selando aquela amizade de crianças que ia se nutrindo das descobertas e desafios da mata, dos campos, dos bichos, do rio, da noite, da fogueira e do companheirismo de irmãos e dos outros jovens idealistas.
E a menina cresceu. Então um dia, já não eram os acampamentos que a faziam ansiar a chegada do feriado prolongado, mas o namorado, o encontro com os amigos, as baladas na cidade. E a ave-bastão, por um tempo ainda esquecida no canto do quarto junto com as bandeiras, depois foi transferida para o quarto de despejo no fundo do quintal. Lá, pelo menos lhe concederam o digno direito de permanecer de pé, encostado a um canto junto das bicicletas com os pneus vazios, caixas velhas e outros trastes.
E lá ficou, não sabia bem a que esperar. Por vários feriados, várias férias de verão e inverno, meses, anos. Às vezes, via a menina que passava pelo quintal. Já não era mais menina quem por lá passava. Virara uma bela moça, que já não tinha mais olhos para a ave-bastão, e já não gostava de acampamentos. Seu olhar estava voltado para um horizonte mais distante, mais instigante, mais turbulento do que as aventuras nos perigos dos capões e dos campos.
E o bastão esperou com paciência. Talvez outra criança o encontrasse, e ainda voltasse às caminhadas pelo campo e pela mata, escapulindo de feras selvagens e monstros guerreiros. Talvez fosse desdobrado em varetas para pipas, e embora mutilado, desse razão a risos, cores e piruetas lá no azul do céu. Talvez ardesse na lareira numa noite fria de inverno, imolado em nome do calor e do fascínio das chamas e brasas vermelhas que por instantes desfazem as cismas que embotam e amarram os sonhos humanos.
Esperou, esperou, sentiu-se velho, e esquecido. Até que numa manhã, para seu espanto, quem o reencontrou não foram crianças, mas eu, já um sexagenário. Tinha um objetivo bem definido em minha procura. Tomei-o com muito apreço, estimando-lhe a consistência, o peso, o calibre, a distância entre os nós, examinando o estado das fibras, que bem tinham resistido ao tempo e aos bichos roedores. E enquanto o alisava e sentia, lembrava dos acampamentos a que conduzira as então crianças, felizes com suas mochilas e a inseparável ave-bastão.
Fiz algumas medidas com o bastão no próprio corpo, na palma das mãos, na largura do peito e dos quadris, e serrei-o com muito cuidado, em três partes medidas com ritual devotamento. A parte do meio, bem o comprimento entre dois nós da cana do bambu, resultou numa barra roliça e lisa, exatamente do tamanho necessário, a largura de meus quadris. As duas outras, a cabeça e o pé da ema, foram para o depósito de lenha. Talvez venham mesmo a tornar-se as varetas da pipa de um neto ou o alume do fogo de uma das frias noites de inverno.
O resto de cajado, já sem a cabeça e o pé da ema, mas nem por isso sentindo-se menos encorpado, ainda não atinara com o fim que lhe coubera. A que serviria agora? Estranhamente, assim decepado sentia-se ainda mais inteiro, mais contundente, mais próximo de seu insuspeitado destino. Ainda o tomei com o desvelo dispensado a objetos raros e caros, lixei demoradamente as bordas ásperas deixadas pelo serrote. Até deixá-las tão suaves quanto a pele lisa da cana do bambu. Parecia o arqueólogo a remover a pátina da relíquia, ou o garimpeiro a remover da gema oculta a incrustação de ferrugem que a embrutece, ou a água do rio rolando os seixos contra os seixos, até que polidos e roliços uns contra os outros, não mais se deixem ferir.
O cajado já não era mais bastão, nem cajado. Tornara-se, decepado de suas extremidades, mas entronizado das lembranças de suas aventuras com os jovens escoteiros, um símbolo de vida. Segurei-o pelas suas extremidades, suavemente aninhadas na palma de cada uma das mãos, e o novo objeto, em leves e lentos círculos de sobe e desce diante do abdome, meu olhar grave e sereno, realizou a missão de concentrar, de massagear, de restaurar, de vitalizar, de transcender. Ele era agora um instrumento quase mágico de energização, um talismã de saúde, inspirado nos exercícios de cura da milenar medicina oriental. Aquele nó de bambu tornara-se a ferramenta para exercícios chineses para evitar problemas na próstata.
Eu e o pedaço de bambu comungamos na lembrança dos caminhos que tínhamos percorrido ao lado das aventuras da infância dos dois irmãos. A perda de minha mocidade já passada era compensada pela força daqueles bem vividos instantes.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).