A MOÇA DO MURO

(26/06/2009)


No carro eu percorria a ruazinha de suburbio e uma centenária casa parecia me seguir.Cansada e preguiçosa,ela me espiava por trás do arvoredo.Mergulhado no frescor da manhã um homem cruzava a rua; tão anônimo quanto as botinas que lhe calçavam os pés.Aqui e ali traços de vidas iam se mostrando.Bocejante, o bodegueiro da esquina esguichava o piso . Mesinhas e cadeiras brancas, refrescavam-se a contra gosto; no outro boteco dois senhores conversavam agachados nos degraus da escada e pouco mais acima, luzia sobre a torre de zinco,a cruz da igrejinha.Tudo quieto,meio sonolento,nada de extraordinário;não fosse a moça (de cujas feições presumia-se longos anos vividos)postada ao lado da casa centenária.Debruçada sobre o muro,aquêle seu olhar,alheio e distante,insinuava-se num revirar mentalmente de páginas amareladas no diário de vida.
Ao redor,um emaranhado de arbustos varava os gradis,oferecia algumas flores desbotadas; tão esmaecidas e sem graça quanto a sua aparente desolação.No rápido instante em que cruzei por ela,pude captar o que imaginei ser a sua solidão,indiferença ou insatisfação com tudo o que lhe cercava.E fui então pelo caminho tentando em vão adivinhar os sonhos malogrados,os conflitos,as amargas lembranças e até, quem sabe , auto punição pelos anos soterrados,opacos,sem realizações."Nem glórias,nem aplausos,pensei"...Talvez até, nenhum amor...
Aquêle rosto triste sobre o muro,amparado na concha suave das mãos,certamente não estaria a preocupar-se com o burburinho que ia acordando a rua,mas aos poucos perdia-se na manhã de sábado,numa pastosa desesperança,sob um céu violeta por onde,sem rumo certo,andavam núvens ofuscando o sol.
Fui deixando para trás aquela suposta solidão estática,recostada no muro e percebendo a presença silenciosa de uma outra forma de solidão;que punha-se em movimento,corria em paralelo,invadia as janelas do carro e tomava assento ao meu lado.Compreendi então que o meu brutal atrevimento nas conclusões sobre a moça do muro,refletiam nada além de uma auto analise das minhas proprias carencias,das minhas incertezas e frustrações diante daquilo que até agora não fizera,não consegui ou deixei de tentar fazer.
Minhas mãos,firmes agora no volante,assemelhavam-se à fragilidade daquelas em concha amparando o rosto "alheio" no muro.Aquela solidão,no entanto,divagava,diluia-se num céu desbotado,numa casa centenária,nas flores esmaecidas varando gradis;bebericava na ruazinha de pedras,o silêncio fresco da manhã de sábado.
Limitava-se "ao infinito"!
Não sem antes atentar para o homem de botinas,o bodegueiro da esquina,os amigos no degrau da escada e a cruz na torre de zinco.Já,a minha solidão,não podia perder tempo com detalhes,era fria e cruelmente dura;cobrava total atenção ao trânsito tresloucado,que disputa espaços, que ultrapassa perigosamente,que mata por vezes...Que é indiferente,incapaz de perceber outras solidões fugitivas sobre rodas,que devoram distâncias ou mesmo as quietas que habitam suburbios em muros e casas caiadas,em singelas ruazinhas de pedras.


Texto  reeditado.
Preservados  os comentários  ao  texto  original:

Comentários
59032-mini.jpg?v=1533853037
11/03/2010 21:03 - Anita D Cambuim
Vc consegue transformar cenas cotidianas em crônica que prendem a atenção do leitor. Espero que em breve você traga outras e mais outras. Boa noite.


50775-mini.jpg?v=1272478752
26/06/2009 05:00 - josé cláudio Cacá
Bucolismo, singeleza, sensibilidde, autt análise, tudo isso se juntou para formar uma belíssima crônica. Paz e bem.


49984-mini.jpg?v=1269224956
26/06/2009 03:22 - Adam Zoraski
A beleza poética, o vocabulário e a montagem desse texto é impressionante. Muito bom mesmo!