## SUMIÇO DO OVO ##

Um tanto tonta, coloquei os pés no chão, como de costume. Alonguei os braços para cima, para os lados, toquei na ponta dos pés (hábito diário). Pescoço para frente e para trás. Pronto! A primeira ginástica é esse preguiçoso, mas, habitual alongamento.

Sim, dormi demais, e no dia em que me dou a esse direito acho que estou devendo algo a alguém e enquanto penso, aflita e atrasada (estado perene em meu ser), percebo de repente que esse alguém sou eu mesma e que, por acaso, não estou me cobrando nada.

Com a sandália nos pés, ainda um pouco sonolenta, fui ao banheiro e à cozinha. Sentir o cheiro do café sempre me deixa mais esperta, por isso o faço antes do banho. Mas, excepcionalmente naquele dia, como estava atrasada, e não me recordo bem para quê, como disse, talvez porque estar atrasada seja meu estado permanente, resolvi tomar café logo, pois, além disso, acordei com fome.

Resolvi pelo básico: café com minha crepioca de queijo com banana. Simples e rápida. Coloquei a massa na tigela e peguei o ovo para adicionar à mistura. Foi quando o telefone tocou. É, parece que se o telefone não tocar o dia não começou. A contragosto fui atender. Sabe esses números que ligam quatrocentas vezes ao dia para você? Pois foi um deles. Dizem que são robôs e que ficam tentando até que algum desavisado caia na cilada. Sei não, mas não atendo.

Voltei. Peguei novamente o ovo. Por incrível que pareça o telefone tocou. Nossa! Somos mesmo reféns da tecnologia. Como havia deixado na mesa do corredor, saí, desta vez com o ovo que seria quebrado, na mão, e fui atender. Era minha irmã. Falamos e desliguei. Imediatamente entrou uma mensagem. Voltei, li, respondi. Outra: voltei, li, apaguei. Quer saber? Desliguei. Ninguém merece tamanho desassossego (nunca tinha percebido que essa palavra tinha tantoS eSSeS!).

Voltei para minha receita. Cadê o ovo???? Certeza de que saí com ele na mão! Voltei. Fiz o percurso: corredor, banheiro. Ah! Lembrei que quando desliguei o telefone coloquei água em alguns jarros. Essas coisas que a gente fica fazendo no meio do caminho. Olhei perto das plantas: nada. Não que não tivesse mais ovos, mas eu tinha que achar aquele, pois certamente não havia colocado ele de volta na galinha (falo da galinha artesanal, onde coloco os ovos). Olha que eu já perdi muitas coisas, mas nunca perdi um ovo.

E antes que me digam que essa história de ovo e galinha é coisa de Clarice Lispector eu vos digo: o ovo era meu e não da Clarice. O ovo dela era um ovo qualquer, aleatório. Clarice não queria quebrá-lo. Eu queria quebrá-lo e comê-lo no café da manhã. Ela viu o ovo, apenas, e percebeu que não podia estar vendo porque "ver o ovo nunca se mantém no presente". Ri quando lembrei da frase do conto O Ovo e a Galinha: " No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo". Pois era exatamente isso: meu ovo era agora apenas uma lembrança. Como não lembrar de Clarice? E não tive como me conter ao, inevitavelmente comparar o conto ao fato real. "Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo". É brincadeira né? Pensei: Ela veio tomar café comigo e sumiu com o ovo, provocando essa lembrança. E quanto mais lembrava do conto, mais vontade de rir me dava. De repente estavam eu, Clarice e o não ovo, além da não galinha.

E se "a galinha é um grande sono", o ovo, definitivamente havia me tirado a sonolência com a qual cheguei à cozinha.

"– Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome."

Sim, Clarice, eu estava com fome, sim. E se o ovo é a alma da galinha eu ia comer a alma da galinha sem o menor constrangimento porque, até então, eu não tinha, nem de longe, lembrado do seu conto, nem do seu ovo, muito menos da sua galinha, que tem a posse do ovo e que se depender de mim eu diria apenas que sumiu "o ovo", não me importando que o mundo ficasse nu. Eu precisava da gema, da clara, do ovo todo e se ele me via eu não mais o via e isso me perturbava porque em algum momento ele iria apodrecer onde estivesse. Iria ficar preto e não mais branco e eu iria chamá-lo de preto e de podre, vivendo assim pra sempre. Vou chamar preto de preto, e a humanidade, assim, se perpetuará.

Perdi o grande sacrifício da galinha, Clarice, e o seu sonho inatingível. E se você não entendeu sua viagem, eu certamente entendi a minha. Não sou galinha, mas estou permanentemente sobrevivendo. Se a galinha não sabia que tinha um ovo, eu sabia, ele estava em minhas mãos até seu misterioso sumiço. Sim, eu iria comer (e comi) o mal desconhecido dela e não me deu congestão. Na verdade estou eternamente gestando a vida que quando enfim nascer, morrerá.

Pensei; - a partir de certa idade você começa a perder as coisas com mais frequência: chaves, óculos e celulares são os mais habituais, mas um ovo???? Tenha paciência. Acho mesmo é que quando a idade vai chegando a gente nem pode mais esconder nada de ninguém, correndo o risco real de escondermos de nós mesmos. Mas, voltando ao ovo: uma hora ele aparece, só não sei onde. Fui fazer, enfim, meu café da manhã. Dessa vez com telefone desligado e agarrada a um ovo como se ele, por conta própria, fosse sair correndo. Talvez ele tenha cumprido seu papel de ovo: me levar ao insólito conto de Clarice.

Até agora ele não apareceu. Caso mesmo de desaparecimento. O que me leva a refletir sobre a frase:

"Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez."

Instintivamente abri a janela e para minha surpresa:

não, o ovo não estava lá.

Taciana Valença

TACIANA VALENÇA
Enviado por TACIANA VALENÇA em 12/07/2019
Reeditado em 13/07/2019
Código do texto: T6694192
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