Vodka

Eu estava pouco contente em ter de ir aquele jantar mas, feliz ou infelizmente, aquela não era uma obrigação da qual havia alguma chance de fuga, pois se tratava de uma celebração oferecida por um casal de amigos.

Quando uso a palavra “amigos” não quero dizer que eles eram pessoas com quem eu meramente me relacionava bem, nem que eram o tipo de pessoa as quais eu estava preso por obrigações sociais ou profissionais. Quando uso a palavra “amigos” quero dizer que eles sabiam de todos os detalhes sórdidos e terríveis que poderiam destruir minha vida, ao mesmo tempo em que tinha, e ainda tenho, plena certeza de que nunca o fariam. Em suma, eles eram meus amigos, e o mínimo que eu devia a eles era minha presença.

Cheguei um pouco atrasado e encontrei todos com seus copos já devidamente preenchidos com cerveja, o que me serviu de excelente desculpa para encher meu. Dentre as bebidas disponíveis eu preferia vodka, mas como todos ainda se atinham ao sortimento menos alcoólico resolvi que dançar conforme a música seria socialmente mais adequado.

Bebi um pouco em silêncio até que fui inevitavelmente incluído nas conversas que se davam entre as pessoas mais próximas de onde eu me sentara. A princípio fiquei um pouco constrangido, mas não demorou muito para que a boa companhia e a cevada desanuviassem minha timidez, e antes da terceira rodada ser servida eu já me sentia como que conversando com velhos conhecidos.

Não sei dizer exatamente em que momento ela entrou na conversa, mas posso afirmar que no momento em que o fez roubou minha total atenção, meus olhares, palavras e pensamentos lhe pertenciam, e cheguei até mesmo a quase me esquecer da vodka que eu não estava bebendo. Quase.

Eu poderia usar dos mais variados artifícios literários para descrevê-la, poderia dizer que ela é como uma planta silvestre cuja flor cresce escondida em meio a folhagem e que não aceita ser cultivada, poderia compará-la com uma noite morna de céu estrelado em meio ao auge do inverno, ou poderia descrevê-la como aquele estágio inicial de embriaguez no qual a razão ainda impera mas o sorriso brota sem motivo aparente.

Infelizmente nenhuma dessas analogias serve sequer para enunciá-la, então terei de engolir meu orgulho como escritor e usar apenas uma palavra, fascinante.

Não sei por quanto tempo conversamos, e na verdade não ligo, mas quando voltei a dedicar qualquer parte de minha atenção aos demais percebi que eles se preparavam para partir, e confesso que fiquei decepcionado, julgando que ela faria o mesmo. Felizmente eu estava enganado, pois o velho destino ainda tinha algumas cartas reservadas aquela noite.

Todos se retiraram, com exceção de um seleto grupo que meus amigos convidaram a permanecer por mais algumas horas, grupo este que incluía tanto a mim quanto a ela. Tentei pensar em algo inteligente e auspicioso para dizer ante aquela situação, mas fui novamente surpreendido por um dos coringas que o destino guardará nas mangas. Quando meu olhar a encontrou ela estava de pé no bar, servindo-se do líquido cristalino ao qual eu ansiara durante toda a noite.

Fui inteligente e rápido o suficiente para não precisar de um convite, e num estalar de dedos fui até o bar para também me servir de uma boa dose da bebida. Brindamos, bebemos e conversamos, e se há algo que emoldure aquela noite certamente foi o beijo que consegui surrupiar de seus lábios ao nos despedirmos.

Schrodinger
Enviado por Schrodinger em 10/07/2019
Código do texto: T6692936
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