UMA ESCRITA INERTE
O sangue doado no dia anterior corria o risco de coalhar na bolsa. Balouçava quase imprestável no tripé, sujeito ao descarte.
As plaquetas deveriam despencar dolentemente pela canícula.
A vida fluía a passos milionésimos.
O paciente permanecia moribundo, à espera de cura. Suas palavras eram impossíveis e desnecessárias porque eram inarticuláveis . Necessária e urgente era apenas sua reação clínica.
O smartphone na mão da acompanhante. Emudecida, ela apenas se materializa num paradoxo com o moribundo. A agilidade dos dedos no teclado virtual e a rapidez de raciocínio ao elaborar argumentos, à cabeceira do leito de vida que aos poucos se transformava em leito de morte.
As palavras eloquentes eram imprimidas num outro texto que o moribundo preferia deletar. Do paciente, argumentos evasivos não tinham mais razão de ser, por isso se calara.
A vida, como o texto do teclado não tinha mais qualquer lógica.
Hospital já foi definido como lugar para morrer. Voltou a ser lugar para prolongar a vida. De lugar para morrer, virou lugar para viver e retorna a ser lugar para morrer. Era agora um lugar de moribundos que buscavam a vida e de outros moribundos que se enterravam em vida.
E foi aí que o mundo se transformou num imenso hospital, ou seja, um lugar para se mortificar vivo.
As relações virtuais se tornaram vida-morte porque não possuem canais vitais como a canícula que conduz plaquetas.
Foi assim, entretanto, que o texto não oralizado se tornou clássico.
A moça inerte ao lado do moribundo. O vivo ali parecia ser apenas o smartphone, em cuja tela reluzente ela digitava com agilidade.
As palavras, que tinham a pretensão acentuada de eloquência, foram imprimidas num outro texto deletado. E, sem mais argumentos, a única opção era o emudecimento.
Os argumentos passaram a não exigir lógica. A lógica seria agora um fator execrável.