Na paquera, com Montaigne
Amigo meu de grande erudição acha um pouco estranho que eu deixe no carro um exemplar dos ensaios do pensador francês Michel De Montaigne (1533 -1592) para ler entre uma e outra atividade rotineira.
Quando lhe falei sobre esse meu hábito, chegou a sorrir com certa carga de censura, ao mesmo tempo irônica e divertida. Depois me explicou a razão de sua estranheza: Sublinhando a opinião de autoridades como o crítico norte-americano Harold Bloom, ele considera Montaigne um dos grandes sábios de todos os tempos - alguém que nos põe em sintonia com boa parte do que "de melhor a humanidade já produziu". Com muita razão, acredita que os dois volumes dos ensaios são metade da jornada a caminho do conhecimento que expande, aprofunda e liberta o intelecto para um julgamento mais acertado da aventura humana.
Consequentemente, a idéia de que tal tesouro esteja atirado ao vulgar banco de um automóvel, e seja lido no estacionamento, em salas de espera ou na mesa de uma lanchonete, deixou esse meu conselheiro intelectual meio espantado. Não me disse, mas imaginei-o indicando a situação ideal para se ler os ensaios: uma varanda decorada com objetos de arte onde o sol desenhasse suas rendas ao encontrar o tênue obstáculo das folhagens. Quem me dera fosse possuidor de uma dessas vilas (falo das habitações italianas, nas quais Montaigne certamente hospedou-se por ocasião de algumas de suas viagens). Em lugares assim, as emanações do saber cristalino e sem empáfia nos abastecem até nas pausas em que abandonamos o livro sobre o colo (ou o aparador) e nos detemos absortos, em longas e sonoras inspirações.
Não. Minhas leituras de Montaigne têm lugar em meio à balbúrdia humana e tecnológica do século XXI, a considerável distância histórica e geográfica do Renascimento. É certo que Montaigne foi obrigado a recolher-se à torre de seu castelo em Bordeaux - o Mirante do Sábio – para dedicar-se à leitura dos clássicos greco-romanos e a seus próprios escritos. Fugiu da atmosfera viciosa e falsa da sociedade da sua época, e nesse observatório teve a calma e o silêncio necessários à elucubração de um iluminado ceticismo. Leio em resenha da enciclopédia eletrônica Terra que tratava-se de “retiro secular, do ócio útil, proveitoso, digno de um homem de sentimentos nobres, elevados, atividade já recomendada por Aristóteles”.
Embora burguês de nascimento e posses, Montaigne tornou-se nobre com castelo e tudo. Quanto a mim, tenho de me contentar em ouvir todo o tipo de ruído enquanto procuro aquietar a mente para que a prosa do humanista francês revele, na clareza de detalhes e na graça estilística, a paisagem humana em dimensões que vão do épico ao pessoal, dos campos de batalha aos salões da diplomacia, da taverna à sala de jantar.
Só uma coisa me distrai de Montaigne, o que talvez justifique a opinião que ele próprio tinha sobre o objeto da distração: o trânsito constante de mulheres, em especial no ventilado hall externo de um edifício onde me detenho por uma hora, duas vezes por semana. Por ali passam moças do melhor jaez, mas como as do tempo de Montaigne, avessas à ouriversaria intelectual e mais afeitas à ouriversaria ela mesma, além dos demais recursos da estética.
Se estão ao lado, não raro mostram-se curiosas em relação ao conteúdo das minhas leituras, numa espécie de sondagem, cujos resultados não costumam combinar mais tarde com o leque de interesses que abanam por essa nossa superaquecida paisagem pós-moderna. Nesses intervalos, Montaigne me inspira frases de torneio elaborado, de que me utilizo no anseio de pescar lampejos do espírito ou iluminações do corpo em algum secreto lago de tão maviosas criaturas.
É curioso – e disso não falei ainda ao meu amigo – ver flutuando ali na brisa do pátio citações de Cícero e versos de Virgílio em batalhas encarniçadas contra os exércitos da fala oca de Paulo Coelho, Fábio Assunção, Débora Secco e Eduardo Moscóvis.
Talvez seja esse o grande mérito da minha atitude pouco cerimoniosa para com a resplandecente arca do pensador francês: retirá-lo de sua confortável reclusão, de seu auto-exílio luxuoso e trazê-lo de novo para o campo de batalha, a fim de que prove mais uma vez sua coragem, astúcia e lealdade à nobre causa da cultura e do pensamento.