As meninas

As meninas

Ouvia-se gargalhadas, um remexer de panelas na cozinha, um cheiro de comida invadia todo o seminário. Era uma manhã alegre de domingo, a hora do almoço se aproximava. O muro, ainda que baixo, cercava-nos de uma realidade perversa. A missa havia terminado há pouco e todos estavam satisfeitos com seu dever de católico exemplar cumprido. Olhei meu relógio de pulso, ele marcava 11h, meu estômago reclamava de fome.

Na época, eu trabalhava em um projeto social como assistente de professor. O projeto acolhia crianças pobres de infância e adolescentes munidos de sonhos abafados pela violência e pobreza. A realidade era deplorável. Da classe que acompanhava, duas crianças (meninas) descobriram, por acaso, onde eu morava. Começaram a visitar o local, quase sempre na hora do almoço. Não esperava naquele domingo; mas vieram. Abro um parêntese para falar da realidade mundial da igreja na época, centenas de casos de pedofilia. A mim, a presença delas não me incomodava nem um pouco, mas era somente a mim.

Fui convidado a ir até a casa delas para falar com os pais. Antes, preparei alguns alimentos em umas sacolas e as levei em casa. As meninas indicaram o endereço. A casa ficava a dois minutos do mesmo. Na porta de entrada da casa havia uma fossa aberta. Avistei, próximo à fossa, uma mulher magrela segurando uma criança e sentada à beira de um fogo — uns gravetos ardiam em brasas e sobre os mesmos uma panela—, parecia preparar algo para a criança que chorava um choro agudo.

Fiz sinal com a cabeça para uma delas, responderam que era sua mãe. Cheguei perto e disse:

— Com licença, senhora!

— Bom dia, moço! — sua voz estava triste.

Nunca tinha visto aquela mulher.

— Vim trazer suas filhas. — A partir daqui, contei o que tinham me mandado dizer.

— Me perdoe seu moço, fique tranquilo, elas nunca mais irão lá; não sabia que elas estavam indo lá. — Disse a mulher olhando para o chão, roçando a língua por entre as frestas do dente.

Nunca mais soube do paradeiro das meninas. Fui transferido para outra atividade. Aquelas meninas estavam famintas, e espero que nunca mais tenham passado fome. Às vezes, a pobreza incomoda. E hoje me incomodo por ter sido pobre de espírito!