Página de literatura russa

No tempo de Dom Canuto I, o poeta, vivia em casa deste um rapaz, não mais do que isso, dos mais inseguros. Era daqueles que chamam a atenção pela sua tentativa de ser discreto. Tão ostensiva era a sua tentativa de não aparecer que, naturalmente, era sempre descoberto. Nessas ocasiões, era forçado a falar e a interagir, como se pessoa normal fosse – não era. Não ali, ao lado de pessoas com quem não tinha nenhum vínculo de parentesco. A relação com Dom Canuto era de ordem meramente literária, isto é, insuficiente para as conveniências da vida social.

Todos se esforçavam para que se sentisse bem, mas ele se sentia mal ao saber que era necessário que as pessoas se esforçassem para que se sentisse bem. E então, na primeira oportunidade, ele fugia de casa, arrumava pretextos improváveis, dizia que ia à igreja, mesmo que fossem duas da tarde, e toda a família de Dom Canuto se admirava daquela vida tão santa e pia. Mas era apenas para respirar que ele saia, para ficar só e não ter mais que se preocupar com o que é correto fazer. Voltava à noite com mais ânimo, por vezes chegava até a arriscar uma frase qualquer.

De toda forma, eram muitas as horas vagas, e ele as gastava deitado, lendo um livro, “Maravilhas do Conto Russo”, se é que há algum que não o seja. A vida era aquilo, uma página de literatura russa. O que é que ele estava fazendo ali, vivendo de favor na casa dos outros, numa cidade estranha e distante? Ele era um personagem complexo de Dostoievski, um personagem pobre de Gorki, cheio de elevações espirituais como um personagem de Tolstoi. Ler os contos trazia, se não paz, ao menos identificação. Mas não conseguia se concentrar por muito tempo na leitura. Levantava, ia até a estante e olhava as lombadas dos livros que não eram dele. Às vezes tirava um, folheava, mas logo colocava de volta. O tempo não passava, e ele queria que chegasse a hora de dormir, a hora de relaxar e a hora de se esquecer.

Ao seu lado, Dom Canuto poetava, como era de hábito. Tirava acordes no violão, queria aprender uma música do Chico Buarque, o “Fado Tropical”, aquela com um discurso no meio, “sabe, no fundo eu sou um sentimental...”. E Dom Canuto cantava e discursava na hora que tinha que discursar, e o fazia com tanta desenvoltura que causava inveja ao rapaz ao seu lado, que não tinha sangue lusitano e achava que tinha a alma russa. Dom Canuto era um pouco como ele seria um dia, ou como poderia ter sido.

O poeta tinha outros amigos que apareciam e, quando ninguém da família estava presente, eles iam até os fundos da casa para ter experiências sensoriais significativas com a planta que passarinho não fuma. Isso ele, o russo, teve que adivinhar, porque nunca foi convidado. E também não iria, mesmo que fosse convidado. Então ficava no quarto, na frente de um computador, e a casa toda fechada, certamente para que não entrasse o cheiro, e lá nos fundos todos eles riam, riam de um jeito que ele não costumava rir, se bem que ele não costumava rir de nenhum jeito.

Levantava cedo, antes de todo mundo. Tinha um trabalho a duas horas de ônibus, e dentro da mesma cidade. Tomava café sozinho. Descobriu que ali se comia muito cuscuz, mas nunca entendeu qual era a graça dele. Emprestava a mãe de Dom Canuto para fins de lavagem de roupa e, nos fins de semana, cozimento de almoço. Dois meses viveu nessa rotina, que não podia mesmo durar mais, mesmo na mais caridosa das sociedades. Um dia se deu conta de que precisava ir, embora não soubesse bem para onde.

Era fim de tarde. Dom Canuto o acompanhou até o ponto de ônibus, ele e uma mala velha, ele e a sua vida. Lembrou-se então de não ter colocado o seu livro dentro da mala. Arre, pois que ficasse por lá mesmo. De vida russa, já basta a que se vive.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 01/07/2019
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