Publicações anteriores desta série: (pesquise pelo nome do autor)
  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!
  Crônicas de Brandão - 6) Perseguindo a Polícia
  Crônicas de Brandão - 7) Acabou em Pizza! 
  Crônicas de Brandão - 8) Louça Suja se Lava em Casa!
  Crônicas de Brandão - 9) A Velhinha de Taubaté
  Crônicas de Brandão - 10) Matusa... para os Íntimos!!
  Crônicas de Brandão - 11) Rainbow...
  Crônicas de Brandão - 12) "Pois eu d'rei q'não!"

 
 Crônicas de Brandão


13) Um dia de Fúria!
 

       Minha tolerância a permanecer em uma loja não passa de quinze minutos. Entro e compro. Ou não entro. A visão daquela variedade enorme de itens, dos quais mais de noventa e nove por cento não me interessam, me angustia, me hipnotiza e me faz sair correndo se não consigo achar logo o que quero. Não consigo administrar indecisão entre tantas opções. Por isso, nunca faço compras com minha esposa, a não ser nos supermercados, onde o que temos que comprar é mais ou menos óbvio. Talvez um trauma de infância. Mas isso não me incomoda desde que eu detenha o poder de decidir o momento de cair fora.

       A Rua do Gasômetro localiza-se numa área de compras no bairro do Brás, em São Paulo, bem próximo ao centro da cidade, especializada em materiais de construção, mais especificamente em madeiras, ferragens e acessórios para a montagem de móveis.

       A partir do início da década de noventa, o termo Gasômetro, utilizado popularmente para designar toda essa área, passou a incorporar o vocabulário do sarcasmo carinhoso e brincalhão que invariavelmente Brandão e eu utilizávamos para nos divertir à custa das experiências insólitas vividas em comum.

       Em algum momento de 1992, Brandão veio de Brasília para São Paulo, com o propósito de comprar todo o material necessário para construir uma casa no Lago Sul, em Brasília. Dizia ele que o custo do frete era muito mais que compensado pela diferença de preços dos materiais entre as duas praças. E era mesmo. Mas também contava em sua decisão o fato de poder ter minha companhia durante as compras. Minha relação com Brandão não me permitia abandoná-lo nessa empreitada. Enchi-me de coragem e aceitei o desafio.

       A ideia era comprar tudo em uma única loja, para minimizar o custo do frete. Já de pesquisa feita, Brandão escolheu uma loja em São Bernardo do Campo, município da grande São Paulo.  Saímos cedo de casa. Antes das oito já estávamos na porta da loja. Brandão tinha uma lista de todos os itens que precisava. A lista só não incluía os materiais básicos como tijolo, ferro, areia, madeira e cimento.

       Meticuloso, ritmo lento, cuidadoso ao extremo, Brandão pesquisava cada item da lista, comparando marcas e tipos diferentes, preços, combinação de cores e estilos, tudo. Não podia errar. Não tinha como devolver ou trocar nada, pela restrição da distância.

       Eu me imbuí da maior boa vontade para superar minha “lojofobia”. Para me distrair, até dava sugestões, fazia críticas ou acenava minha concordância com as decisões de Brandão. Na primeira hora. Depois, um torpor começou a me invadir e eu perdi a capacidade de acompanhar as minúcias tratadas entre Brandão e o vendedor que lhe atendia. Mais um tempo e a angústia tomou conta de mim. Outra hora, e eu já estava por explodir. Mais uma hora, e meu desequilíbrio emocional não me permitia mais agir em nome da grande amizade que tinha com Brandão. Mas eu me segurava, pois a lógica me dizia que Brandão não era culpado de minha aversão por lojas e ele tinha que concluir suas compras. Afinal, foi para isso que viera de tão longe.

       Às cinco horas Brandão tinha concluído a lista, à exceção dos puxadores dos armários, um item com que a loja não trabalhava. Depois, as deliberações sobre como embalar, onde entregar, data da entrega, etc. Depois, o pagamento. Depois o discurso de agradecimento pela paciência, competência e boa vontade do vendedor.

       Às cinco e meia, estávamos prontos para finalmente deixarmos a loja. Eu já sabia que o calvário não terminaria ali. O trânsito àquela hora iria tirar de mim o pouco da sanidade que ainda me restava.

       - Ah - Brandão se lembrou - você sabe onde posso encontrar os puxadores? – perguntou ao vendedor.

       - Sim – respondeu ele – no Gasômetro!

       Senti uma reviravolta no estômago. Brandão continuou:

       - Que horas fecham?
 
       -Às seis, mas sempre ficam até um pouco mais tarde.


       Eu tinha um nó no pescoço que não me permitia falar. Fomos para o carro em silêncio. Ao meu lado, no banco do passageiro, Brandão arriscou:

       - Compadre, que tal se déssemos um pulinho no Gasômetro?

        Foi a gota d’água! Brandão não conhecia São Paulo. Não tinha ideia de distâncias, dos focos de congestionamentos a partir das cinco. Além disso, Brasília àquela época não tinha congestionamentos. Entretido com as compras, Brandão também não tinha notado meu estado de cólera. Sorria para mim, satisfeito com as compras que tinha conseguido fazer.

       Aí eu explodi!

       - Pulinho no Gasômetro? –, gritei - Você tem ideia de onde fica o Gasômetro? No centro de São Paulo! Estamos em São Bernardo do Campo, outro município! São quase cinco e meia. O trânsito nesse percurso é infernal a essa hora! Não há como chegar lá antes das seis. Nem “até um pouco mais tarde! ” -, esbravejei como nunca tinha feito com Brandão antes. Fleumático, como sempre, insistiu calmo:

       - Compadre, se eu não comprar esses puxadores aqui em São Paulo, não vou encontrá-los em Brasília. É a única coisa que falta! É só mais uma puxadinha! O pior já foi! –, disse com sua voz forte, mas branda, procurando ser enfático em seu argumento. Eu já não tinha mais condições de argumentar. Curto e grosso eu o interrompi, minha voz enrouquecida pelo nó no pescoço:

       - NÃO, vamos pra casa!
 

***
 

Ah, quantas vezes Brandão me visitou depois desse evento! E quando se mencionava um lugar distante, de difícil acesso ele perguntava, irônico, ainda sem conhecer nada de São Paulo:

       - Mais longe que o Gasômetro?