O sítio de Vargem Grande do Sul
Meu pai participava de um grupo familiar de roda de pôquer, reuniam-se pelo menos umas duas vezes por mês. Eram Dona Tilinha e o esposo, Seu Benedito, os mais idosos, o Varela e o Paulino. Dona Tilinha era a mais astuciosa e usual ganhadora daquelas rodadas caseiras. Vinha de Vargem Grande do Sul, uma pequena e paradisíaca cidade paulista quase na fronteira com Minas Gerais, próximo a Poços de Caldas. Ela tinha morado no bairro de Santa Terezinha, próximo ao Chora Menino, na zona norte de São Paulo, onde morara meu pai durante sua infância e juventude. Eram amigos desde aqueles tempos. Seu Benedito era um italiano naturalizado, tinha sido proprietário de uma fábrica de fogões, estava aposentado. O Varela era um antigo colega da Polícia Militar e dedicado amigo de meu pai. O Paulino, um sóbrio funcionário público mulato, era amigo de infância de meu pai, lá do Chora Menino.
Dona Tilinha gostava muito de contar e recontar uma estória de uma memorável mão de pôquer que certa vez ela ganhara de um morador da sua cidade, fanático pelo jogo. Não sei se a estória é verdadeira, mas ela gostava de gabar-se de ter ganho uma boa bolada e vencido aquele adversário blefando com um par de setes. Mas ela nunca revelava o que realmente tinha ganho naquela célebre rodada. E ensinava a todos a importância de saber blefar. E penso que todos acreditavam que ela estava sempre blefando, pagavam suas apostas, e perdiam, porque ela quase sempre tinha jogo.
Seu Benedito e Dona Tilinha moravam em São Paulo, e tinham um sítio de três alqueires situado a uns dois quilômetros do centro da cidade de Vargem Grande do Sul. Já não me lembrava do nome do sítio, soube agora pela Suely, neta de Seu Benedito, que era Córrego do Sapo. Pelo menos uma vez por ano íamos passar uns dias lá. Ia toda a roda de pôquer, eles passavam dia e noite jogando. Minha mãe era quem se ocupava da cozinha, com a ajuda ocasional da Dona Tilinha. Eu perambulava pelo sítio, caçando passarinhos com uma espingardinha de pressão. Hoje me arrependo muito daquele cruel hábito, só muitos anos mais tarde soube pela Suely que Seu Benedito se afligia muito com aquela minha maldade, sofria cada vez que eu aparecia no sítio com a espingardinha.
Por muitos anos, desde minha tenra infância até quando já estava na universidade, visitamos o sítio de Vargem Grande do Sul. Era o meu lugar preferido para passar feriados e férias. Seu Benedito amava aquele sítio. Percorria-o comigo mostrando as árvores frutíferas que lá plantara, segundo ele eram mais de oitenta espécies. As mais espetaculares eram as jabuticabeiras, lembro-me de vê-las completamente carregadas, os troncos e galhos ficavam negros das frutas, nem se podia ver a cor da madeira. Além das frutíferas, tinha milharal, arrozal, canavial, plantação de feijão, um pequeno pasto para a vaca malhada, o curral da vaca, um pequeno celeiro, um forno de barro fora da casa, um terreiro para secagem de grãos bem em frente à sede, a casa do caseiro, um paiol com um moinho manual para espremer a cana para a garapa que era por todos, crianças e adultos, muito apreciada. O sítio tinha também área com mata nativa onde existiam muitos grandes e redondos blocos de pedra, devíamos estar sobre um corpo de granito.
A casa era antiga, mas muito espaçosa e confortável. Nos primeiros tempos ainda não tinha energia elétrica, a luz era de lampião, o banho era com água esquentada no fogão e colocada num balde adaptado como chuveiro. Só depois a luz elétrica foi instalada. A água vinha de uma fonte situada não longe da casa, ali era acumulada num pequeno reservatório e depois era bombeada, no princípio com uma bomba carneiro, que dispensava eletricidade, para a caixa dentro da casa. A frente da casa era uma ampla varanda, que se alteava sobre o terreiro de secar grãos. Para além do terreiro existiam mamoeiros sempre com frutos maduros que atraíam muitos pássaros. Havia também uma paineira, uma grande pedra redonda de granito e muitas jabuticabeiras. Do outro lado, algumas mangueiras e um imenso guapuruvu, que na época certa enviava-nos sementes que desciam rodopiando. Nós as chamávamos de helicópteros com fichas, as favas daquela árvore. No horizonte em frente, ao longe, colinas com pastos onde apareciam muitas pedras redondas e gado pastando. Na parede dentro da casa ao lado da porta que saía para a varanda havia uma singela e belíssima aquarela de uma amiga italiana do Seu Benedito, que os visitara em alguma data. A aquarela era um retrato enxergado pela artista justamente dali daquela varanda, ela captara e transformara em imagem toda a luz e magia daqueles elementos simples e maravilhosos que construíam um lugar tão aprazível.
A sala da casa tinha algo que muito me atraía. Uma estante de livros à altura de uma criança, podíamos ver e pegar os livros. Ali, estimulado pelo Seu Benedito, que hoje reconheço era um amante da literatura, li alguns bons livros. Lembro-me particularmente do As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury, que muito me impressionaram.
Seguindo adiante do sítio pela estrada que vai a São Sebastião da Grama, na várzea de um ribeirão existiam uns pequenos lagos, resultantes da abandonada extração de argila para a fabricação de telhas, tijolos e manilhas nas olarias da cidade. Nesses lagos, à noite, íamos pescar traíras. Usávamos isca de carne, era impressionante como as traíras eram vorazes, tínhamos de usar encastoadores de arame longos e fortes, sob pena delas cortarem a linha com seus afiados dentes. Nem fisgávamos as gulosas traíras, quando elas abocanhavam a isca de carne, puxávamos rapidamente o caniço para fora da água, as traíras iam cair no barranco atrás de nós. Para isso tínhamos de usar caniços com ponta dura, e não aqueles flexíveis que eram usados para pescar lambaris e outros peixes menos esfomeados.
Muitas outras lembranças daquele sítio estão fortemente impressas em minha memória. Até hoje, quando ouço os gritos roucos morredouros dos anus, inconscientemente transporto-me para lá. Lembro-me também de caminhadas noturnas de volta da cidade, junto com minhas irmãs Laude e Nira, e os netos de Seu Benedito e Dona Tilinha, Suely e Kalil. Assustávamo-nos com a escuridão e as sombras das árvores, íamos cantando para afastar o medo, mas Suely, muito peralta, amedrontava-nos falando do cavaleiro sem cabeça que costumava abordar os caminhantes noturnos numa escura encruzilhada que tínhamos que atravessar. Frequentemente aquelas caminhadas noturnas terminavam numa debandada das crianças, que chegavam em casa esbaforidas.
Outra vez, numas férias de verão, o sítio encheu-se com a família de Seu Benedito e Dona Tilinha, além dos habituais jogadores de pôquer. Era a safra do milho verde, o fogão de barro ao lado da sede era o centro das atenções, ali se fez de tudo naqueles dias. Os adultos falavam que aquele evento era uma pamonhada, mas se fez pamonha doce e salgada, curau, bolos de milho diversos, espigas cozidas e assadas. Uma festa do milho. Nessas mesmas férias, muitas crianças no sítio, Seu Benedito arranjou com o caseiro, que era também quem ordenhava a vaca malhada, para fazer a ordenha num momento em que a criançada pudesse experimentar o leite morno direto da vaca. Logo cedo a criançada estava no curral, foi uma alegria, aquele leite morno e espumoso esguichado pelo hábil caseiro diretamente da teta da vaca para o copo.
À noite, as crianças gostavam de se deitar no chão de tijolo do terreiro de secar grãos para observar o céu. O chão estava ainda morno do sol da tarde, o céu era deslumbrante, um borrão de luzes como não tínhamos ideia na cidade. E competíamos para enxergar estrelas cadentes e satélites. Naquela época já existiam os pontinhos luminosos caminhantes pelo céu, que os adultos nos explicaram ser os artefatos humanos colocados em órbita do planeta.
Creio que uma das últimas vezes que estive no sítio foi em 1971, eu já estava na universidade, cursando o primeiro ano de Geologia. Tive uma forte crise existencial, não sabia mais o que queria fazer da vida. Acho que aquela falada crise pós-parto, de jovens que com demasiada expectativa e esforço entram no ensino superior e logo se decepcionam. Procurei refúgio no local que me parecia o mais protetor e acolhedor, o sítio de Vargem Grande do Sul. Fui de ônibus, lá estavam somente Seu Benedito e Dona Tilinha, que muito estranharam a minha visita extemporânea. Mas creio que já tinham conversado com meus pais por telefone e entraram em algum tipo de entendimento.
Logo na manhã seguinte após minha chegada, Seu Benedito deu-me uma trincha e uma lata de cal, e mandou-me caiar as grandes pedras redondas que ficavam nas proximidades da casa. Estranhei muito aquele pedido, parecia-me despropositado. Gostava muito mais das pedras com sua apresentação natural. Só muitos anos depois, numa conversa com Suely, a neta de Seu Benedito, creio que entendi uma possível razão para aquele estranho pedido. Era uma maneira de manter-me ocupado e evitar que eu saísse a caçar passarinhos. Mas, se me lembro bem, justo daquela vez nem tinha levado a espingardinha. Talvez os motivos de Seu Benedito fossem outros.
Apesar das caçadas de passarinhos daqueles tempos, das quais muito me arrependo, hoje me reconheço como um amante e respeitador da natureza. Escolhi a profissão de Geólogo, uma ciência natural, e ao longo da vida profissional envolvi-me em várias causas em defesa do meio ambiente contra crimes que seriam cometidos por inescrupulosos empreendedores.
O sítio de Vargem Grande do Sul com certeza teve muito a ver com tudo isso.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).