Nelson Gonçalves
100 anos
1. Ele continua sendo o meu cantor predileto. Vem de muito longe minha admiração por Nelson Gonçalves. Eu, rapazinho, árdego e sonhador, contei com o Nelson nas minhas apaixonadas serestas em Fortaleza; nos meus romances, intensos e inolvidáveis; e nas horas de dilacerantes dores de corno...
2. Para todos esses momentos, ele tinha uma canção. Vou dar dois exemplos. Certa ocasião, apaixonado por uma linda mulher, descobri, com a ajuda do Nelson, a maneira mais fácil de lhe celebrar a beleza. Cantei ao seu ouvido, na alcova e no divã, a música "Escultura".
* * *
" Escultura - Cansado de tanto amar/ Eu quis um dia criar/ Na minha imaginação/ Uma mulher diferente/ De olhar e voz envolvente/ Que atingisse a perfeição./
Comecei a esculturar/ No meu sonho singular/ Essa mulher fantasia./ Dei-lhe a voz de Dulcinéia/ A malícia de Frinéia/ E a pureza de Maria./ Em Gioconda fui buscar/ O sorriso e o olhar/ Em Du Barry o glamour./ E para maior beleza/ Dei-lhe o porte de nobreza/ De madame Pompadour/ E assim, de retalho em retalho/ Terminei o meu trabalho/ O meu sonho de escultor/ E quando cheguei ao fim/ Tinha diante de mim/ Você, só você, meu amor." Ora, ela se sentiu a própria e me cobriu de beijos.
* * *
3. Na fulô da idade, frequentei , não nego, modestos e ricos lupanares. Entre os jovens de minha geração, alguns, os mais românticos, talvez, "apaixonavam-se" pelas meninas dos bordeis, que escolhiam no lusco-fusco dos enfeitados salões de dança.
4. Essa "paixão" podia, entre um bolero e outro, sofrer avarias ou interrupções incontornáveis. Sim, porque a rigorosa cafetina ensinara que as meninas deviam "gostar de todos mas não gostar de ninguém". De repente o mancebo, que se "apaixonara" por uma dessas borboletas, era passado pra trás, sem aviso prévio.
5. De súbito, depois de algumas doses de cuba-libre (a bebida mais barata) me vi "gostando imensamente" da Matilde, sergipana de sorriso meigo, exuberante no trato e fisicamente. Jovem, ainda engatinhava nos prazeres das madrugadas das mulheres de todos.
6. Passei a frequentar sua alcova, que tinha o cheiro dos jasmins, florzinha branca que lembrava meu pai. "Amava-mos", enquanto, no salão, uma enorme vitrola rodava, quase sem interrupções, "Meu vício é você" e "Mariposa" belas canções do Nelson.
7. O Brasil está festejando (não como deveria fazê-lo) o centenário de Nelson Gonçalves. Ele nasceu na cidade gaúcha de Santana do Livramento no dia 21 de junho de 1919. E morreu no Rio de Janeiro no dia 18 de abril de 1998, abatido por um enfarte. Teve uma infância pobre e uma vida adulta cheia de problemas. Mas, como cantor, foi um vencedor.
8. Briguento, gago e namorador, Nelson não levava desaforos pra casa. Resolvia tudo no tapa. Muito corajoso, num entreveiro, no bairro da Lapa, chegou a enfrentar Madame Satã, o malandro mais temido da cidade do Rio de Janeiro. É uma história envolvida num estranho folclore. Mas Nelson confirmou.
9. Um dia, lhe foi perguntado qual a música do seu repertório que gostaria de ser lembrado. Não pense, leitor amigo, que ele apontou "A volta do boêmio". Não, Nelson respondeu sem tergiversar: "Última seresta". No meu modo de ver, a sua cara.
* * *
Ultima Seresta - Nesta última seresta/Tenho o coração em festa/ quando devia chorar/ Sigo triste por deixar a boemia/ Porém cheio de alegria/ Por ela me acompanhar/ Digo adeus às serenatas/ Aos montes, rios e cascatas/ E às noites de luar/ Adeus, adeus minha gente/ Uma canção diferente/ Vai o boêmio cantar == Adeus amigos leais/ Que não deixaram jamais/ Fazer-me qualquer traição/ Vosso amigo vai partir/ Mas vai feliz a sorrir/ Com ela no coração/ Adeus seresta de amor/ Adeus boêmio cantor/ Perdoa a ingratidão/ Pois, para o meu novo
abrigo/ Eu levo apenas comigo/ Ela e o meu violão".
* * *
10. Chamava-se Maria Luiza da Silva Ramos a última mulher de Nelson Gonçalves. Ela lhe deu dois filhos, Ricardo e Jaime. Mas lhe deu muito mais: a mão amiga e muito amor no momento em que ele mais precisou de ajuda para se livrar da cocaína, que o levou ao inferno, entre 1958 e 1966.
11. Sofrendo horrores, Maria Luiza manteve-se firme ao lado de Nelson nas celas das cadeias e no quarto do casal, ele drogrado e agressivo.
12. Meu homenageado de hoje é, no seu centenário, o cantor Nelson Gonçalves, o gago que cantou bonito, encantando o Brasil.
E o faço, creio, da melhor maneira possível, ou seja, lembrando, com muito respeito, MARIA LUIZA, sua companheira das horas ingratas; seu último e grande amor...
100 anos
1. Ele continua sendo o meu cantor predileto. Vem de muito longe minha admiração por Nelson Gonçalves. Eu, rapazinho, árdego e sonhador, contei com o Nelson nas minhas apaixonadas serestas em Fortaleza; nos meus romances, intensos e inolvidáveis; e nas horas de dilacerantes dores de corno...
2. Para todos esses momentos, ele tinha uma canção. Vou dar dois exemplos. Certa ocasião, apaixonado por uma linda mulher, descobri, com a ajuda do Nelson, a maneira mais fácil de lhe celebrar a beleza. Cantei ao seu ouvido, na alcova e no divã, a música "Escultura".
* * *
" Escultura - Cansado de tanto amar/ Eu quis um dia criar/ Na minha imaginação/ Uma mulher diferente/ De olhar e voz envolvente/ Que atingisse a perfeição./
Comecei a esculturar/ No meu sonho singular/ Essa mulher fantasia./ Dei-lhe a voz de Dulcinéia/ A malícia de Frinéia/ E a pureza de Maria./ Em Gioconda fui buscar/ O sorriso e o olhar/ Em Du Barry o glamour./ E para maior beleza/ Dei-lhe o porte de nobreza/ De madame Pompadour/ E assim, de retalho em retalho/ Terminei o meu trabalho/ O meu sonho de escultor/ E quando cheguei ao fim/ Tinha diante de mim/ Você, só você, meu amor." Ora, ela se sentiu a própria e me cobriu de beijos.
* * *
3. Na fulô da idade, frequentei , não nego, modestos e ricos lupanares. Entre os jovens de minha geração, alguns, os mais românticos, talvez, "apaixonavam-se" pelas meninas dos bordeis, que escolhiam no lusco-fusco dos enfeitados salões de dança.
4. Essa "paixão" podia, entre um bolero e outro, sofrer avarias ou interrupções incontornáveis. Sim, porque a rigorosa cafetina ensinara que as meninas deviam "gostar de todos mas não gostar de ninguém". De repente o mancebo, que se "apaixonara" por uma dessas borboletas, era passado pra trás, sem aviso prévio.
5. De súbito, depois de algumas doses de cuba-libre (a bebida mais barata) me vi "gostando imensamente" da Matilde, sergipana de sorriso meigo, exuberante no trato e fisicamente. Jovem, ainda engatinhava nos prazeres das madrugadas das mulheres de todos.
6. Passei a frequentar sua alcova, que tinha o cheiro dos jasmins, florzinha branca que lembrava meu pai. "Amava-mos", enquanto, no salão, uma enorme vitrola rodava, quase sem interrupções, "Meu vício é você" e "Mariposa" belas canções do Nelson.
7. O Brasil está festejando (não como deveria fazê-lo) o centenário de Nelson Gonçalves. Ele nasceu na cidade gaúcha de Santana do Livramento no dia 21 de junho de 1919. E morreu no Rio de Janeiro no dia 18 de abril de 1998, abatido por um enfarte. Teve uma infância pobre e uma vida adulta cheia de problemas. Mas, como cantor, foi um vencedor.
8. Briguento, gago e namorador, Nelson não levava desaforos pra casa. Resolvia tudo no tapa. Muito corajoso, num entreveiro, no bairro da Lapa, chegou a enfrentar Madame Satã, o malandro mais temido da cidade do Rio de Janeiro. É uma história envolvida num estranho folclore. Mas Nelson confirmou.
9. Um dia, lhe foi perguntado qual a música do seu repertório que gostaria de ser lembrado. Não pense, leitor amigo, que ele apontou "A volta do boêmio". Não, Nelson respondeu sem tergiversar: "Última seresta". No meu modo de ver, a sua cara.
* * *
Ultima Seresta - Nesta última seresta/Tenho o coração em festa/ quando devia chorar/ Sigo triste por deixar a boemia/ Porém cheio de alegria/ Por ela me acompanhar/ Digo adeus às serenatas/ Aos montes, rios e cascatas/ E às noites de luar/ Adeus, adeus minha gente/ Uma canção diferente/ Vai o boêmio cantar == Adeus amigos leais/ Que não deixaram jamais/ Fazer-me qualquer traição/ Vosso amigo vai partir/ Mas vai feliz a sorrir/ Com ela no coração/ Adeus seresta de amor/ Adeus boêmio cantor/ Perdoa a ingratidão/ Pois, para o meu novo
abrigo/ Eu levo apenas comigo/ Ela e o meu violão".
* * *
10. Chamava-se Maria Luiza da Silva Ramos a última mulher de Nelson Gonçalves. Ela lhe deu dois filhos, Ricardo e Jaime. Mas lhe deu muito mais: a mão amiga e muito amor no momento em que ele mais precisou de ajuda para se livrar da cocaína, que o levou ao inferno, entre 1958 e 1966.
11. Sofrendo horrores, Maria Luiza manteve-se firme ao lado de Nelson nas celas das cadeias e no quarto do casal, ele drogrado e agressivo.
12. Meu homenageado de hoje é, no seu centenário, o cantor Nelson Gonçalves, o gago que cantou bonito, encantando o Brasil.
E o faço, creio, da melhor maneira possível, ou seja, lembrando, com muito respeito, MARIA LUIZA, sua companheira das horas ingratas; seu último e grande amor...