A cachorra Xana
Tanto eu quanto minhas irmãs insistimos que meu pai concordou em trazer-nos dois filhotes de cães, que ele conseguiu no canil da prefeitura. Éramos crianças bem naquela tenra idade em que já não somos bebês, e ainda não somos pré-adolescentes já com outros interesses, distantes da companhia dos cães.
Meu pai trouxe logo dois filhotes, os dois mestiços, pois naquele canil não se encontravam cães de raça. Mas os dois eram muito bonitos. Um macho, mestiço com pastor alemão. Uma fêmea, de porte grande e pelo marrom encaracolado, não fazíamos ideia de qual raça pudesse ser descendente.
Deixaram que nós crianças déssemos os nomes aos cães. O macho chamou-se Sheik, a fêmea Xana. Lembro-me vagamente que quando dissemos o nome meu pai franziu o cenho, mas deixou ficar.
Naquela época periodicamente meu pai reunia-se com amigos para uma mesa familiar de pôquer. Gente simples, mas nem por isso ingênua. Um dos amigos era Paulino, um funcionário público mulato de poucas palavras que era amigo de infância de meu pai, tinham crescido juntos no Chora Menino, bairro da zona norte de São Paulo próximo à Santa Terezinha. Quando Paulino perguntou o nome dos filhotes, meu pai falou Sheik e Xana, olhando sério e significativamente bem nos olhos do Paulino. Lembro-me que ele sustentou o olhar sério de meu pai e perguntou, igualmente sério, mas com um ar de incredulidade e ao mesmo tempo escárnio:
-- Xana?
Ao que meu pai, ainda sério, mas que me pareceu conter algo mais, indefinível para mim, respondeu.
-- É. Xana. Foram as crianças que deram os nomes...
-- Aaahhh... -- assentiu o Paulino, como quem compreende algo incompreensível.
Aquele curto diálogo cheio de significados não revelados ficou gravado naquele menino. Só muito mais tarde entendi a razão do estranhamento mal disfarçado contido nele.
Passados uns meses, Xana adoeceu. Uma forte e persistente caganeira estava mortificando-a. Não me lembro por qual razão, tive que ser eu, um menino de cerca de oito anos, a levar a Xana ao veterinário. Meus pais, que por algum motivo estariam ocupados justo na hora da consulta, instruíram-me sobre o que relatar ao veterinário.
-- Não esqueça de falar da diarréia...
Eu nunca ouvira aquela palavra, que me pareceu muito estranha, perigosa. Eu nunca vira nada parecido com diarréia por perto da Xana. Devo ter pensado que meu pai, que pouco tempo dedicava a brincadeiras com os filhotes, não vira bem o que se passava com nossa adoecida filhote peluda.
No veterinário, eu estava muito constrangido diante do médico de cães. Parecia que era eu que estava doente e passando pela consulta. O médico examinou-a, auscultou-a, depois perguntou a mim quais eram os sintomas que ela apresentava. Sintoma pareceu-me outro perigo do mesmo porte de diarréia. Disse que ela não tinha sintomas, nem diarréia, mas que estava com uma caganeira que durava dias, comia pouco, e não queria mais brincar, só ficava quieta no canto.
Depois, em casa, meus pais me perguntaram como tinha sido a consulta. Falei-lhes que o veterinário tinha perguntado dos tais sintomas e da diarréia, ao que eu respondi que ela só tinha mesmo caganeira, e falta de vontade de comer e brincar...
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).