COMBOIOS DA MADRUGADA




16/05/2010

Madrugada de domingo.
Meu filho,saiu para a balada...Nena,minha cara
metade, dorme o sono das justas.
Sozinho,nesta madrugada quase gelada,ponho-me à procurar pela esquina de minha historia onde acabei me perdendo do sono.
Afasto a cortina do quarto e a janela abre-se num olhar marejado para a rua deserta.
A neblina entrecortada pela luminária do poste sugere-me cenário de filme de suspense. Então,diviso nas pedras da rua Espírito Santo,imagens ilusórias a subir e descer a ladeira.
O rádio ligado na cozinha me traz a voz do Chico falando de Carolina.
Aquela !... Dos olhos fundos.
Ajeito o cobertor sobre a dorminhoca e dirijo-me pra lá.O Chico prossegue,dizendo agora:
"Eu bem que avisei a ela,o tempo passou na janela e só Carolina não viu..."
Romantismo e poesia à parte,o cenário que se desenha à minha frente é algo de estarrecedor .(Apesar de eu mesmo tê-lo criado durante as lides como cozinheiro de fim de semana)
Resolvo dar um trato na bagunça,até como forma de prevenir prováveis encrencas matinais diante do terremoto que assolou o ambiente.
Lembro-me de Lisyt,minha amiga do Recanto das Letras, e desligo o rádio.Quero,tal como ela costuma dizer, sentir,aspirar e até ouvir ,se possível, a voz do silêncio.
Lavar a louça,dependendo da maneira como se encara a tarefa,pode transformar-se em algo agradável e até agir como terapia.
Abro a torneira e viajo no barulho da água escorrendo, Imagino uma cachoeira em tardes ensolaradas.A espuma abundante do detergente sugere-me ondas de mar,nuvens de outono ou coisas afins...
As louças,sujas e engorduradas,submetidas à lavagem,à mim sempre evocaram uma cerimônia de purificação.A passagem do impuro para o sem mácula,é como a renovação do ser.Uma vida nova abrindo-se para um caminho de reorganização.
E assim vou procedendo.O silêncio é total.Até os cães emudeceram...Deve ser o frio,vou atinando com meus botões.
De repente a madrugada estraçalha-se aos apitos de uma locomotiva.Embora a linha férrea localize-se num bairro distante de onde estou,os ecos me atingem com nitidez e posso até ouvir,ainda que distanciado,o barulho das rodas sobre os trilhos.
Aquele apito soa feito um grito doloroso,amedrontado.Procura abrigo em minha quase solidão e subitamente sou remetido à distantes tardes de sábados de minha infância,quando ansiava pelos apitos do trem que traria meu pai.Experimentei novamente aquele misto de ansiedade e alegria que antevia a sua chegada.Voltei ao portão do tempo, com arco de cedrinho, cruzei a calçada de tijolos delineada de gerânios com os pacotes de jujubas e outras guloseimas que ele me trazia.Minha mãe ajudando a carregar as bagagens e "Branca" de Zequinha de Abreu rodopiando em assobio nos
lábios do recém chegado.Tão somente devaneios,já que os apitos desta madrugada nada têm a oferecer-me além da nostalgia.
São invasores!
Bolinam minha solidão,ironizam minhas lembranças...
Mas,são também,doídos e solitários.Devoram distâncias e acorrentados à desoladora monotonia apunhalam a madrugada de pouca luz.
Penso em maquinistas.Os olhares atentos,a voz que se cala sobre as paralelas encravadas no negrume das distâncias.
Rodopiam fantasiosos em meus pensamentos ,um homem enigmático de sobretudo e valise,um vendedor de maçãs embrulhadas em papel roxo...Bandoneon,Gardel e um par dançando tango à "media luz".
Brumas,frio sulino,silêncios...
Evita Peron saindo das páginas amareladas de uma reportagem de revista local,acenando o lenço de seda branca,perfumadíssimo!
Imagens ilusórias de um trem internacional à caminho da Argentina.Anos 50,a môça pobre iratiense na plataforma, aspirando o perfume da Sra.Peron. A alma enfeitiçada por uma das mais belas lembranças de sua existência !
A memória olfativa fazendo-lhe etérea sonhadora no comboio do tempo. Muitos anos depois,a graça de conseguir adquirir nos Champs Elisees,o mesmo perfume da senhora do trem internacional.
Aqueles maquinistas nem sabem,nada ouvem nada percebem,além dos traços paralelos que os arrastam no breu da madrugada.
Talvez a companhia silenciosa das estrelas seja o elixir que os fortalece.
E as estações ,uma a uma,vão ficando atrás de cada apito,feito espectros das lembranças de uma era romântica de trens,de risos,acenos, de flertes apinhando-se pelas janelas de vagões.
Os apitos vão-se aos poucos diluindo-se à distância e as paginas de Mário Quintana,um anjo disfarçado de poeta ,à minha frente são consolo para o meu devaneio:

DESESPERO
"Não há nada mais triste do que o grito de um trem no silêncio noturno.É a queixa de um estranho animal perdido,único sobrevivente de alguma espécie extinta,e que corre,corre,desesperado,noite em fora,como para escapar à sua orfandade e solidão de monstro."


(Mário Quintana)

Refém do meu próprio silêncio,concordo plenamente.