O menino bruxo
Aquele grupo de meninos com idade em torno de dez anos estava pela primeira vez num acampamento de verdade, numa mata de verdade, na Serra da Cantareira, para além do Horto Florestal, na extremidade norte de São Paulo. Em barracas de verdade, com fogueira de verdade, mosquitos e outros bichos de verdade. Por lá escutamos, ninguém sabia o que era, a roncaria de um bando de bugios que se aproximava. Assustamo-nos, chegamos a imaginar que fosse um bando de onças, tal a força daquele desconhecido rugido. Fomos ficando apavorados até que o chefe, ao longe, percebeu, veio e explicou-nos, não sem um pouco de troça, que era só um inofensivo mas barulhento bando de macacos bugios, nativos daquelas paragens.
Éramos parte de um grupo escoteiro da cidade, a maioria nunca dormira antes fora da casa dos pais. Entre nós, eu era o mais novo e menor, o mais tímido, o principal alvo das zombarias dos maiores. O mais atrevido era Edinho, que não perdia a oportunidade de me provocar e escarnecer. Resignadamente, eu ia tolerando as constantes pilhérias e pequenas humilhações, a espera de uma oportunidade de revide.
Todas as noites nos reuníamos à volta da fogueira, que se tornava um fulcro de luz e animação em meio à densa escuridão da mata, que parecia tudo querer engolir. À volta do fascínio das brasas e das labaredas bruxuleantes sucediam-se jogos, brincadeiras, cânticos escoteiros, que iam se revezando com incrível espontaneidade, e adentravam pela noite. Nessas horas, eu sempre cobria as costas com um ordinário e surrado cobertor de algodão de cor marrom escura, que minha mãe tanto recomendara, para proteger-me da friagem e do sereno da noite ao relento.
Numa dessas ritualescas reuniões noturnas, alguém propôs que fizéssemos uma brincadeira de esconder na mata. Um dos meninos iria procurar os outros, o primeiro a ser descoberto seria o alvo de um castigo para o escárnio de todos, e depois ele mesmo seria o encarregado da busca, no prosseguimento do jogo, que iria até que nos cansássemos dele. A proposta logo foi aceita com entusiasmo, realizar a conhecida brincadeira de esconde-esconde na escuridão da noite da mata era um desafio instigante.
Edinho logo se apresentou, fez questão de ser o primeiro a procurar. E enquanto acertávamos os detalhes da brincadeira, ele já me perseguia com o olhar, um sorriso malicioso, a dizer-me quem seria sua primeira vítima. A brincadeira mal começara, Edinho nem esperou o tempo que tínhamos combinado para os meninos esconderem-se e saiu em minha perseguição. Ele tivera o cuidado de me seguir com os olhos enquanto os outros meninos espalhavam-se e desapareciam pelo mato escuro, longe da luz da fogueira.
Eu percorria sôfrego o caminho entre as árvores na escuridão, procurando um esconderijo, o cobertor às costas. Edinho vinha logo atrás gritando provocações, era-lhe muito fácil seguir o ruído dos meus passos barulhentos e assustados, fugindo à sua frente. Até que me dei conta que não conseguiria escapar. Então estanquei por um instante numa pequena clareira da mata, olhei à volta e num lampejo inexplicável, vindo não se sabe de onde, tive um repente que me pareceu salvador. Deitei-me rente ao chão e cobri o corpo todo com o cobertor escuro que trazia às costas. O rosto colado ao chão, sentia o cheiro da terra e das folhas secas, escutava a aproximação do perseguidor que vinha logo atrás.
Quando Edinho alcançou o local onde escutara meus passos pela última vez, começou a vasculhar os arbustos e árvores, ainda proferindo provocações. Procurava sempre por alguém de pé ou agachado, não lhe ocorreu procurar alguém deitado ao rés do chão, e muito menos bem no meio da pequena clareira na mata onde estávamos, seria demasiado evidente.
Para minha sorte, Edinho não tropeçou em mim enquanto ia inspecionando, um a um, os possíveis esconderijos. Com a respiração suspensa, percebi que pouco a pouco ele parava de dizer provocações, seus passos e movimentos já não eram de um destemido perseguidor, mas iam se tornando os de um menino incrédulo e assustado com uma suposta desaparição. E que parecia ainda mais temer uma provável fantasmagórica reaparição do desaparecido.
Por um breve momento fez-se silêncio na escuridão, os dois meninos, a poucos passos um do outro, contiveram a respiração a escutar, a mata toda emudecida. Eu estava a ponto de por em prática um impulso de vingança que crescia dentro de mim, que me impelia a saltar aos berros de meu esconderijo, golpeando meu perseguidor com o cobertor violentamente açoitado sobre ele. Não cheguei a ter tempo de realizar o intento, subitamente escutei Edinho em desabalada e apavorada carreira pelo caminho de volta à luz da fogueira.
Depois de algum tempo ainda oculto sob o cobertor, em contato com o chão coberto de folhas, mergulhado no silêncio e na escuridão da mata, desfiz meu esconderijo. Enrolei-me de volta naquele que agora me parecia um manto de invisibilidade e voltei à fogueira, onde encontrei os meninos já reunidos. Edinho descobrira outro que já estava a sofrer as penas de seu castigo e seria o próximo perseguidor.
Percebi que Edinho, sem nada dizer, dirigiu-me um olhar de desconfiança e temor. Aproveitei-me então da situação, olhei firme de volta, desafiador, como a querer dizer:
-- Cuide-se! Não sabe com quem está lidando! Você não me viu, mas eu o vi.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).