Os quintos dos infernos

Nasci em Votorantim, por um acaso. Meus pais e minhas duas irmãs mais velhas são da cidade de São Paulo. Meu pai, naqueles idos de 1952, era oficial da Polícia Militar e tinha sido transferido para Sorocaba. A família morou lá por poucos anos, nesse meio tempo eu nasci. Naquela época Votorantim era ainda um pequeno distrito fabril de Sorocaba. Por lá existia o novo hospital maternidade Santo Antônio, onde por alguma conveniência minha mãe foi ter-me. Ela me conta que nos dias de convalescença após o parto, de seu leito ela via pela janela colinas com vastos pastos verdes e vacas pastando mansamente. Animais que traziam lembranças de sua infância de cultivadores de flores na periferia de imigrantes de São Paulo.

A designação de meu pai em Sorocaba durou três anos. Eu tinha mais ou menos essa idade quando a família teve de voltar a São Paulo. Fomos então morar na casa de meus avós maternos, uma chácara para cultivo de flores na Rua Dona Luiza Tolle, Bairro de Santa Terezinha, na zona norte da cidade. Fora naquela casa que, uns sete anos antes, meu pai batera ao portão após seguir minha mãe pela rua por alguns quarteirões, desde a estação de trem de Santa Terezinha, onde a vira pela primeira vez. Ali começara o namoro que virou casamento e gerou três filhos, Nira, a mais velha, Laude, a do meio, e eu, o caçula.

A transferência de meu pai de volta a São Paulo fora um tanto antecipada. Tivemos de morar na casa de meus avós por uns dois anos, enquanto ele construía uma nova casa para a família no Bairro da Santa Inês, ainda mais para a periferia, já para os lados do Horto Florestal. Aquela nova casa pertenceria à família até 2008, mais de cinquenta anos depois.

Tenho poucas lembranças, vagos lampejos, daquele tempo em que vivi em Sorocaba. Mas lembro de algumas passagens na chácara da Dona Luiza Tolle, onde minha avó Francelina e meu avô José cultivavam as flores que ela ia vender no Largo do Arouche, no centro da cidade. Eram rosas, palmas, margaridas, crisântemos, dálias, gérberas, jasmins, camélias, giestas e principalmente violetas, estas singelas, de um tipo com folhas lisas, que hoje já quase não são encontradas. Minha avó ajeitava as violetas envoltas em suas próprias folhas em delicados macinhos, arranjava-os junto das outras flores numa grande cesta de bambu trançado que ela apoiava sobre a cabeça com a ajuda de um suporte feito de um pano enrolado, e lá se ia ela. Caminhava lenta mas segura, muitas vezes descalça, da casa até a estação de Santa Terezinha. Lá tomava o trenzinho maria-fumaça que vinha da Serra da Cantareira, ia descer na estação da Rua da Cantareira junto ao Mercado Municipal, já no centro da cidade. Dali ainda caminhava até o Largo do Arouche, lá pousava a cesta no chão e aguardava seus fregueses, a maioria mulheres, que eram compradoras habituais.

Uma lembrança muito forte daquela época é a minha avó, analfabeta, rude e sábia, pés descalços, mãos calejadas e unhas cheias de terra, ajeitando aqueles macinhos de uma delicadeza incomparável, que eram, pelo que ela dizia, as flores que sempre acabavam primeiro. Pois que eram muito procuradas, mas estas principalmente pelos fregueses homens, que mimavam suas amadas com aquelas belas e delicadas prendas.

Guardo outras lembranças daqueles longínquos tempos naquela chácara, que talvez muito tenha contribuído para meu apreço pela natureza e para a minha futura escolha profissional. Ela era então cercada por muitos terrenos baldios, um deles muito grande, era uma floresta de araucárias onde às vezes meu pai nos levava passear. Lembro-me do encanto de caminhar por aqueles bosques de árvores que me pareciam gigantescas e selvagens, com a confiança da mão segura de meu pai a me conduzir, e das muitas flores coloridas que chamávamos beijo, e que alguns chamam de maria-sem-vergonha, enfeitando a trilha em que caminhávamos. Ainda hoje, mais de sessenta anos depois, ainda existem por lá, em meio a prédios imensos, algumas araucárias remanescentes, no terreno de um clube que tem em seu nome a palavra “pinheiral”.

O terreno da chácara era um forte declive, um triângulo com o lado maior para a rua lá no alto, um vértice na parte mais baixa, onde havia uma nascente e muita vegetação, árvores, arbustos, orelhas-de-elefante e outras. Era por lá que minha avó cultivava as plantas de longas folhas fibrosas que ela chamava de amarrilhos, que hoje sei tratar-se do sisal. Ela desfiava cuidadosamente as longas fibras, com as quais amarrava os macinhos de violetas. Minhas irmãs e eu chamávamos aqueles confins sombrios e assustadores da parte mais baixa do terreno de quintos dos infernos. Não sabíamos bem a origem e o significado daquele termo usado pelos nossos avós portugueses, mas ele parecia traduzir perfeitamente o que sentíamos por aquele lugar. Uma ribanceira assombrada. Eu tinha medo de ir por lá, só o fazia acompanhado de algum adulto, quase sempre quando minha avó ou minha mãe iam cortar as folhas do amarrilho.

Era nos quintos dos infernos que nós crianças projetávamos todos nossos temores infantis. Todos os fantasmas das redondezas deveriam reunir-se somente naquele lugar. Ele era a nossa salvaguarda para podermos usufruir sem riscos das benesses de todos os outros locais daquela chácara situada praticamente dentro da cidade. Ela tinha pereiras, ameixeiras europeias, nespereiras, goiabeiras, laranjeiras, limoeiros, um galinheiro, um pequeno milharal para o milho das galinhas, os canteiros de flores, umas arvoretas que davam umas grandes flores em forma de saias, que chamávamos de saia branca e saia rosa.

Certa vez Nira, a irmã mais velha, começou a querer exibir-se perante Laude e eu, os mais novos. Subiu numa goiabeira e começou a fazer macaquices, exagerou nas micagens, desequilibrou-se, levou um tombo homérico, estatelou-se no chão. Chegou a cortar os lábios, que sangraram muito. Ela, atônita e desconcertada, saiu em disparada em direção à casa, chorando e berrando pela mãe.

Outra vez eu fui bisbilhotar nos pertences de minha avó perto do tanque de lavar roupas, lá havia várias verdes garrafas de guaraná vazias. Fui verificando-as uma a uma, até que encontrei uma ainda com uns quatro dedos de líquido no fundo. Exultante com minha descoberta entornei um generoso gole, que imediatamente queimou-me a boca e a garganta. Foi a minha vez de sair correndo berrando atrás de minha mãe, que me fez lavar boca e garganta com muita água e depois me fez beber muito leite. O líquido na garrafa de guaraná não era refrigerante, era água sanitária. Aquele foi um grande aprendizado, felizmente sem maiores consequências.

Outra lembrança dos tempos da chácara são as bacalhoadas de minha avó portuguesa, e que depois viriam a ser preparadas também pela minha mãe, ela já nascida no Brasil. Bacalhau naquele tempo era comida de pobre, mas mesmo assim era raro, só o víamos quando meu avô José recebia sua aposentadoria do trabalho da ferrovia. Nos outros dias era carne de galinha. As bacalhoadas são uma lembrança marcante, as grandes travessas com generosos nacos de bacalhau, grandes batatas cozidas, couve-tronchuda, brócolis e ovos submersos no abundante azeite dourado que também era um raro regalo. Naquelas ocasiões os adultos tomavam vinho tinto, as crianças o guaraná. Não bebíamos o vinho, mas acho que só de observar os adultos aprendíamos o que também iríamos fazer anos mais tarde.

E havia também o cão Pirata, um vira-lata mestiço com fox terrier que tinha uma mancha de pelo preto bem em volta de um dos olhos. O Pirata era muito independente, vivia mais na rua que em casa, pouco interagia com os humanos. Andou aprontando, não sei se com as galinhas da minha avó ou se com as roupas do varal, meu pai resolveu livrar-se dele. Embarcou-o no seu Ford Deluxe 1940 preto e abandonou-o em um bairro que lhe pareceu suficientemente distante. Depois de um tempo o Pirata estava de volta em casa. Apesar da aparente indiferença, mostrou que nos tinha grande apego e afeição. E que era um mestre em senso de direção e localização. Não lembro o que foi feito dele então, talvez tenha sido perdoado de seus aprontos.

Bons tempos aqueles...

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).