A Narrativa e a Paisagem
Rio de Janeiro, 22 de junho de 2019. Segundo dia de um inverno tropical. Um sábado de temperatura agradável, sol morno, um céu de um azul intenso na Tijuca. Um azul diferente daquele embaçado, da atmosfera quente do verão. Algumas nuvens se aglomeravam, cinzentas, ao fundo da paisagem, por trás dos prédios na direção da Usina, fazendo crer que na pracinha do Alto da Boa Vista, neste instante, quem lá estivesse. não via a pintura que eu via. As montanhas que cercam o bairro, desde o Sumaré até a Floresta da Tijuca traziam um vento fresco, mas suave, junto com a notícia de que mais tarde a temperatura iria baixar. Era mais do que uma boa razão para sair logo à rua, pegar os primeiros raios de sol e rosear as faces, em busca de um ato saudável e confortante. Não ia sozinha, trazia comigo o livro já iniciado há poucos dias, nada mais nada menos e, com licença da prosa, “Memórias Póstumas de Brás Cuba” do excelentíssimo Machado de Assis. Tinha em mente procurar um lugar na praça Sãens Pena em que pudéssemos nos sentar e, prazerosamente, íntimos e confidentes, conversaríamos sem interrupções, agraciados pelos benéficos raios de sol que já havia dito acima, foi o motivo que me fez sair de casa àquela hora da manhã. Brás acabara de conhecer Marcela e eu queria saber mais do que ele tinha a me dizer sobre ela. Enquanto caminhava para o meu destino, imaginava que não seria difícil encontrar o lugar que queria, já que grande é a área que a praça tem em torno do seu lago com chafariz que, diga-se de passagem, raramente tem água. Pensarão que é por falta de verba, afinal é gratuito o espetáculo, mas para mim a razão é bem outra. Deixarei a curiosidade, caso a tenha despertado e, mais ainda, a minha opinião à respeito nesse veículo onde agora escrevo, mas que raramente alguém visita, mesmo que saiba ser quase hilária a pretensão. Portanto, se julgar pertinente, mais adiante, no final deste parágrafo que já está ficando enorme, darei minha opinião acerca da falta de água do lago da Praça Sãens Pena. Bem no meio dela chegamos. Vi que o sol não era realmente o problema, apesar das muitas árvores que criavam trechos sombrios aqui e ali, mas difícil era achar onde sentar. Os bancos eram poucos e estavam todos ocupados. Nuns, alguns idosos conversavam, liam o jornal ou simplesmente permaneciam inertes ali sentados, enquanto nos outros, viam-se grandes embrulhos que lhes tomavam toda a extensão do assento e, triste realidade desse país, eram de pessoas. Todas enroladas em panos e cobertores informando que a noite havia sido fria e a tentativa agora era fazer o corpo voltar à temperatura normal, o que parece fácil, mas não o é para um morador de rua. Procurei então, em volta, um lugar para tomar um cafezinho, porque é o que sempre procuro antes de qualquer coisa, hábito trazido da Europa, ou melhor, de Portugal (aqui um à parte, se faz favor, pois não consigo tirar o episódio da memória, por causa de um amigo que assim me apresentou o país quando lá aportei, claro que isso foi antes da UE). A xícara a mim entregue no balcão, pequena, branca, e escaldada num grau que o mendigo da praça agradeceria chegar, me queimou levemente a boca, o que poderia me trazer um azedume e atrapalhar o dia de frescor, mas olhei para a esplanada do bar e voltei a me sentir atraída pelo bem-estar que ainda desejava preservar. As mesas de madeira avermelhadas estavam sendo colocadas pelo garçom por debaixo das copas de duas grandes e centenárias árvores que deixavam entrever alguns raios de sol penetrantes dando uma linda iluminação àquele trecho favorecido da rua. Este bar fica na esquina da 45, uma galeria simpática, onde era o antigo cinema Olinda, demolido em 1972 , eu já era nascida. Um pecado. Além desse, todos os outros cinemas em torno da praça desapareceram praticamente na mesma época, um após outro, outro motivo que me faria estender o parágrafo, mas não o farei. Fato é que hoje, para encurtar, os cinemas deram lugar à lojas e à igreja que só não chegou à Marte, pois se diz universal, porque o dinheiro não é lá a moeda de troca. Carreguei a xícara de café para uma das mesas e deixei a queimadura para lá. Pedi desculpas ao Brás e ao Assis, mas conversas assim, tão cheias de conteúdo, como as que temos, não consigo tê-las sentada numa mesa em posição de estudante ou como se estivesse a trabalhar. Tomei o café calmamente e saí. Voltei à praça. Desisti dos bancos. Olhei as muretas em volta dos canteiros e vi algumas pessoas sentadas nelas com a mesma intenção da minha, de se rosear. Procurei um espaço entre elas, e ali fiquei, bem posicionada. Assim que sento, olho em torno e, lembrei que esqueci de uma importante atração da praça. Não para mim, que ainda prefiro buscar meu lugar ao sol, mas é a “Feirinha da Praça Sãens Pena”. São barracas que vendem vários tipos de artesanatos, desde enfeites, roupas e joínhas, se assim as posso chamar, pois não gosto do termo bijuteria (que diferença faz se todas brilham?). Passado o radar a pente fino na paisagem, volto a mim e ao meu posicionamento. Três senhoras conversavam ao meu lado. Duas se foram, uma ficou. Depois foi embora, deu lugar à um senhor idoso que trazia consigo o jornal, lia-o à sombra que fazia seu corpo de contra o sol e o boné que trazia. Tranquilo estava ele, como eu também estava e por isso voltei à Marcela, exploradora, sedutora e interesseira, jamais se deixou enganar por um falso brilhante, como eu com as bijuterias. Fez do Brás seu quinhão que gastou tudo o que não podia até o pai descobrir e o mandar estudar na Europa, ou melhor, Portugal (valha-me Deus, não me sai da cabeça. Devo confessar que o motivo é que era um lisboeta pernóstico que se julgava certo em tudo, por isso talvez não lhe perdoe o deslize, que é bobo por sinal). Assim Brás estudou e se formou em Coimbra e depois, voltou para o Rio de Janeiro. E eu também. Mais precisamente para a Praça Sãens Pena. Voltei porque uma senhora saltou do ônibus que estava parado no ponto ao lado da mureta em que eu estava e começou uma discussão com o motorista sobre dinheiro, passagem, algo assim pois, não consegui entender bem, mas do quiosque dos velhotes que jogam cartas, no meio da praça, um homem malvestido, parece que entendeu e dizia qualquer coisa na direção dos dois que discutiam, que também não entendi. Percebi apenas que no meio de tanta gente, entre pobres, silenciosos, brancos e mendigos havia um quê de convivência possível, de compreensão e respeito ao espaço de cada um. Ou talvez era eu que, segurando um Machado na mão, via tudo em uma narrativa poética, numa linguagem romântica, não sei. Mas o que vale é que o cenário pareceu bem mais interessante do que poderia ser sem esse olhar e foi uma excelente manhã de um sábado de céu azul intenso que resultou nessa vontade feliz de a reportar. Só não fiquei roseada.