Exercício para orelhas desatentas
Prólogo:
Saio da esteira após correr 10km, um pouco suado e 40% desidratado; removo o fone das orelhas com as costumeiras faixas de zumba latino e punk rock 90's que costumo ouvir durante o exercício aeróbico.
Me dirijo até a saída da academia, atravesso a rua e sigo até a padaria, peço um café puro no balcão. Gosto do cheiro amanteigado que veem da chapeira e solicito um pãozinho ao pernambucano simpático que sempre me atende com um sorriso que somente o povo nordestino consegue ofertar numa terça-feira cinzenta, seguida da sua tradicional saudação: “bom dia alemão”.
Procuro uma mesinha livre perto da janela e começo a tomar meu café. Menos de um minuto depois, dois outros frequentadores da mesma academia sentam-se praticamente ao meu lado e começam a discutir sobre política… Inevitavelmente minha intuição sugere a possibilidade de recolocar o fone e voltar a ouvir zumba colombiano, antes dos rugidos dos dois leões de chácara começarem, mas devo ter algum karma masoquista e resolvi permanecer na escuta passiva, segue parte do diálogo sobre como as eleições afetaram o cotidiano e o ambiente universitário na visão deles:
Segundo Ato:
“Véio nas universidades federais, só tem maconheiro, bicha, feminazi e doutrinação esquerdista. Minha prima depois que passou lá está insuportável ninguém mais consegue conversar com ela, fica o dia inteiro discutindo política socialista, depois que o Mito ganhou ela fica aborrecendo a família toda com as derrapadas do cara.”
Minha orelha quase dobra de tamanho… E começo a comer mais lentamente para não perder os detalhes das pérolas. O amigo dele, parece saber que possuo interesse natural por política, prossegue concordando, reclama do Enem desse ano e não satisfeito me coloca na conversa.
Antes explico, sofro de um problema crônico: popularidade pós-eleitoral, quase todo mundo aqui do bairro sabe meu nome. Em 2016 participei das eleições a vereador e mesmo com uma votação inexpressiva, meus jingles eram divertidos e de vez em quando algum eleitor ainda canta os refrões no boteco de nossa família ou mesmo na rua, mantendo a memória musical viva. Pela atuação como jornalista também gostam de ouvir minha opinião semanal sobre a conjuntura.
Conclusão:
“Zé diz aí, você é bem informado e mais equilibrado, nas universidades federais só tem professores esquerdistas não é?”. Faço uma planejada pausa cinematográfica de cinco segundos e respondo com minha diplomacia de boteco costumeira:
“Mas ninguém tem culpa se os professores de direita não passam nos concursos oras!” Impera-se um silêncio quase fúnebre e só consigo escutar a crescente e divertida gargalhada do pernambucano no fundo do balcão.