A crente
Meu pai estava na UTI do hospital militar, eu estava na sala onde ficam os familiares dos pacientes críticos, à espera de notícias. A sala tinha várias pessoas, origens diferentes, idades diferentes... E, como eu iria descobrir, credos e convicções diferentes.
Conversa vai conversa vem, a mulher mulata ao meu lado, já bem madura, com longos cabelos grisalhos encaracolados e igualmente longa, escura e recatada saia, perguntou-me como eu ganhava minha vida. Quando eu respondi que era geólogo, notei um brilho em seus olhos. Ela não perdeu tempo em perguntar-me:
- Qual você acredita que seja a idade da Terra? Em quanto tempo ela foi formada?
Enquanto lhe respondia, procurando organizar o que me pareciam informações elementares, sobre bilhões de anos, deriva de continentes, evolução das espécies e outros assuntos, percebia que pouco a pouco seu semblante ia adquirindo uma expressão cada vez mais de incredulidade, até debochada.
- Como é que vocês sabem dessas coisas? Como sabem a idade da Terra?
Eu, na época, era pesquisador, não professor, mas senti desafiada minha capacidade de transmitir com lucidez aquilo em que eu me acostumara a acreditar. Então comecei a falar em parábolas. Disse-lhe para imaginar uma senhora que fosse à feira e comprasse um cesto de laranjas ainda verdes. A senhora, meticulosa e observadora, contou as laranjas, sabia exatamente quantas havia no cesto. E percebeu que a cada dia que passava cinco laranjas amadureciam, de modo que ela logo pôde calcular quantos dias demorariam para amadurecerem todas as laranjas. E que aquela hipotética senhora, inventiva que era, ficou ainda a imaginar que era possível saber, mesmo passados vários dias, há quantos dias exatamente fizera a feira e comprara as laranjas. Era só
contar quantas laranjas já estavam maduras, dividir o resultado
por cinco, e saberia o número de dias.
Presunçoso, constatando que minha interlocutora permanecia atenta à minha estória, passei à comparação das laranjas com os isótopos radioativos que existem nos minerais e organismos vivos, que permitem calcular sua idade. Ela continuava a observar-me atenta e séria, encorajando-me a prosseguir em minha tentativa de tradução da
ciência que eu aprendera, e em que confiava.
Quando terminei a explicação e olhei-a interrogativamente, ela, com muita serenidade, creio que até com um pouco de compaixão e carinho, disse-me:
- Mas esses tais isótopos não são laranjas, não é filho? E posso lhe garantir, tenho uma laranjeira, e um limoeiro, lá em casa, e as frutas vão amadurecendo sabe-se lá quando, e não assim que eu possa saber quando vai ser. A bem da verdade, meu filho, as laranjas não amadurecem quando querem, nem quando queremos, mas quando a providência quer...
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).