Um pouco do meu corpo

De repente, aquela doce vontade de espirrar. É uma gripe, uma daquelas gripes tão comuns, e que fazem ainda mais sentido para os que estão sujeitos às variações de temperatura do inverno curitibano. Então eu espirro, uma, duas, até três vezes, porque é uma delícia espirrar, é uma libertação e um sinal de que as coisas estão se encaminhando para a cura.

Um espirro significa que há uma multidão de moléculas dentro de mim trabalhando a todo vapor para garantir a minha estabilidade. Elas realmente me amam, vivem para mim, nunca ninguém fez por mim tanto quanto elas. Pensando no esforço delas, a gente até se sente um tanto constrangido por tanta bobagem que fez a gente, um dia, querer morrer. Há por todo o meu corpo um mutirão dando duro para que eu me recupere, não só da minha gripe, mas de uma série de outros incômodos e ferimentos que eu arrumo por aí. Alguém dirá que esse mecanismo não é perfeito, que nunca se viu um braço nascer outra vez no lugar de um mutilado, e é verdade. Sim, não é perfeito. Se perfeito fosse, não seríamos alcançados pela morte. Mas continua sendo fantástico saber que eu posso me machucar, me ferir gravemente, e tudo dentro de mim fará o máximo possível em prol da minha restauração e, se vier o fracasso, não será por falta de tentativa. E então eu chego até a gostar um pouco do meu corpo, eu que não me dou com ele.

Sim, temos uma relação problemática. Muito disso é consequência da minha coluna, minha cifose e minha lordose, que nem me causam muito mal diretamente, mas já fizeram muita gente me apontar e rir. Eu era criança e o que acontece a uma criança reverbera na eternidade. Eu queria esconder o meu corpo, não tinha como gostar dele. E, depois, ainda tinha o meu cabelo, cabelo ruim que não se ajeita e eu não sei ajeitar. Não fui bonito, não fazia sucesso entre as garotas. Não queria aparecer em fotografias.

Além do mais, o corpo, mesmo o mais bonito deles, é, ainda, um incômodo. O corpo não para de exigir: é preciso alimentá-lo, lavá-lo, limpá-lo, vesti-lo, esvaziá-lo, exercitá-lo, protegê-lo. Ele toma conta da maior parte do dia. Se quero ir a um lugar, preciso levá-lo, não basta o meu desejo de estar lá. E a barba, a barba que não para de crescer, sem motivo algum. O corpo rouba o precioso tempo em que eu poderia estar pensando e gozando os prazeres da mente.

Mas há uma conciliação possível. Sou alguém que investiga histórias, que ressuscita os ancestrais, e então eu posso entender o meu corpo como uma herança de milhares de antepassados, cada um deles contribuiu um pouquinho para que eu fosse como eu sou hoje. Da cor dos meus olhos à lordose, tudo é um longo caminho genético até chegar a mim. E o meu corpo se torna então minha árvore genealógica, e então eu gosto desse corpo, aprecio, e ele é bonito.

Mas esses, os que me antecederam, deixaram também os próprios germens do meu fim. Se nada fora do normal acontecer, se eu não me acidentar, se a minha própria irresponsabilidade não me levar a uma doença inesperada, se eu próprio não procurar o meu fim, então é a doença dos meus antepassados que terminará com os meus dias, algo que eles não puderam superar, e eu tampouco. E mesmo isso que pode parecer triste talvez seja bom e me convenha.

Dizem os que quase morreram que a pessoa que sai do seu corpo e consegue visualizá-lo de cima não sente nenhuma relação especial com ele, não há nem mesmo preocupação com o seu destino. Alguns falam até em nojo. Sentem que não são o seu corpo. Nada mais delirante que a criogenia, que querer que depois de tudo ainda se retorne a esse mesmo corpo.

Bem, tudo pode ser, mas não está morto quem espirra. Estão trabalhando para eu melhorar e para eu viver. Não ignorarei semelhante dedicação.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 21/06/2019
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