TRANSFORMAÇÃO

Parecia uma tarde como outra qualquer, sem soma de novidades. Na plataforma da estação Lagoinha, a principal que dá acesso direto à rodoviária, o movimento, como de costume, já era intenso e rotineiro. É comum, enquanto espero o metrô passar, que me conduz até a estação Eldorado, em Contagem, o destino final do trajeto, eu ficar observando o comportamento dos passageiros que descem, azafamados, as escadas de acesso à plataforma, com medo de perderem a chance de embarcar rapidamente no primeiro veículo que aparecesse, Há casos em que a azáfama é tão grande, que nem respeitam a descida da escada móvel, chegando a pular dois ou três degraus, à sua frente, como se estivessem a disputar a corrida com estes, na ânsia de pôr os dois pés novamente sobre o chão firme. Eu, quando vou à Capital, nem me surpreendo mais com toda essa pressa típica das grandes metrópoles; já me sinto até acostumado em presenciar cenas desse tipo, mesmo não enfrentando isso todos os dias, e percebo que muitos cidadãos já se mostram bem condicionados a agir dessa forma, pela própria força do hábito, sem necessariamente, “estarem apressados”. E sem contar ainda que o intervalo de tempo entre um “carro” e outro, pelo menos nesses horários, é bem diminuto, a meu ver, quase insignificante, ou seja, quem chega atrasado a fim de tomar o primeiro carro, não precisa aguardar um tempo maior, até o próximo assomar na curva dos trilhos. Com exceção, é claro, das ocasiões em que o transporte público se vê imensamente abalado por manifestações populares de teor político ou social, ou oportunas greves dos metroviários, em plenos dias de semana, que chegam, praticamente, a paralisar o funcionamento dos veículos ou prejudicar a normalidade dos seus horários. Mas, nos dias habituais, em que tudo parece aspirar o ordinário, a rotina, o ramerrão cotidiano, às vezes, se torna até mais interessante e agradável aguardar o segundo ou terceiro carro passar, principalmente em horários de maior pico. Vale aqui registrar que o intervalo nos horários de pico, em Belo Horizonte, chega a quatro minutos, com vinte e quatro trens em operação; aos sábados, o intervalo mínimo atinge oito minutos, e o máximo é de dez em dias úteis, doze, aos sábados e quatorze aos domingos e feriados, números, é claro, que variam decerto.

Pois sim, e o movimento naquela tarde inolvidável, no trajeto até a estação Eldorado, parecia até certo momento correr sem maiores novidades, como se o próprio tempo também estivesse a correr freneticamente sobre os trilhos. Já passava das quatorze horas e, com exceção das pessoas que transpunham as rápidas portas automáticas, conversando animadas entre si, geralmente acompanhadas de familiares, amigos ou colegas de ofício, e isso não quer dizer que dialogavam e palravam o tempo todo, a maior parte dos passageiros permanecia silenciosa ou absorvida no seu próprio universo. Muitos diante desses verdadeiros artefatos e ‘modismos” produzidos pela sociedade pós-moderna, como tabletes, celulares e smartphones; um ou outro entregue à leitura de um jornal diário ou algum livro físico. O fato é que as pessoas, no geral, durante o transcorrer em minutos da curta viagem, pareciam se portar como se não houvesse mais ninguém diante dos seus olhos, como se viajassem simplesmente sozinhas, numa espécie singular coletiva, de egocentrismo cotidiano.

Na maioria das vezes, quando tenho a oportunidade de ir a BH e pegar metrô, eu dou sorte, nesse mesmo horário, de encontrar quase sempre assento ou banco disponível, e a pressa dos passageiros em transpor as portas automáticas, a fim de garantir esse mesmo sucesso e intento, chega a beirar até algo doentio. Falo assim, pois, afora ocasiões extraordinárias e específicas, desde que me habituei a esse transporte, na minha vida, nunca me preocupei em penetrar feito jato, no veículo, em busca de algum bendito assento vazio; pelo contrário, ajo na maior calma, paciência e tranquilidade possível. Se não for possível me acomodar, paciência, viajo em pé mesmo. Na maior parte das ocasiões, se assim procedo, é para me livrar do risco dessas tais entradas de acesso, a que, para falar a verdade, sempre tive verdadeiro “‘horror”, principalmente no início. Sem contar também aquele temido vão que passa a existir entre o chão da plataforma e o piso do veículo.

Enquanto o carro seguia o seu percurso, passando pelas mesmas estações de costume, no caminho até Eldorado, entre elas, as de Carlos Prates, Calafate, Gameleira, cada uma delas anunciada por meio do áudio do trem, eu me distraía, a observar as pessoas a minha volta, naturalmente, também, sem ânimo de entabular alguma conversação com alguém mais próximo. À medida que o trem parava, alguns passageiros deixavam o transporte, de forma apressada, e outros se adentravam, num fenômeno contínuo de vaivém urbano. Em frente ao meu banco, dois rapazes portando mochilas e que nem se olhavam, permaneciam durante o trajeto, sérios e um pouco cabisbaixos, como se se perdessem nos próprios pensamentos. Será que pressentiam algo de extraordinário pelo caminho ou a circunstância de momento os fazia proceder assim, de forma natural? Vai lá saber. Um senhor de meia idade que aguardava o metrô na estação da Gameleira, penetrou no trem, com dificuldade, um pouco trôpego e cambaleante, como se estivesse ‘‘chapado”, chegando até a esbarrar nos que deixavam o veículo, e foi logo se acomodando, sem, no início, dar confiança a ninguém, dando mostras de até querer dormir.

Bem depois de o veículo ter passado pela estação de Vila Oeste, num ponto à frente, ainda distante uns trezentos metros da próxima estação que seria a Industrial, a última antes da Eldorado, todos foram surpreendidos com um som muito estranho, bastante insólito e incompreensível, vindo do próprio trem. A princípio, mesmo com o barulho, ele ainda se movimentou por mais uns vinte metros, vindo a parar, logo em seguida, permanecendo nesse estado de repouso, inicialmente, por uns cinco minutos. O pessoal começou a ficar um pouco apreensivo no nosso vagão, mas sem contudo, perder a calma ou entrar em pânico e desespero. E a tranquilidade geral pareceu retornar, quando, após esse tempo, o trem principiou novamente a se mover, mas sem sucesso. Quase trinta segundos depois, uma voz feminina soou no áudio, dizendo que o carro só estava passando por um “pequeno problema” de ordem técnica e operacional, e que provavelmente estaria relacionado à “catenária”, e que permanecêssemos aguardando tranquilos, pois logo, logo, dentro de poucos minutos, tudo seria sanado e a normalidade voltaria. Já imaginando que o tempo de espera poderia ser bem mais longo do que esses “poucos minutos”, ergui-me, pela primeira vez, (adiantava alguma coisa, permanecer sentado?) e pus-me a caminhar a esmo pelo vagão, por entre as pessoas, volta e meia, olhando pela janela, aproveitando para apreciar a acerba paisagem externa. Percebi que alguns outros passageiros fizeram o mesmo, e um ou outro chegou até a mudar de assento, contrariado, pois a essa altura, o transporte público já dispunha de bancos vazios.

Uns poucos começaram então a reclamar, em voz alta, da conhecida precariedade dos nossos transportes e uma moça, como se dirigisse a mim e a outras pessoas, referiu-se ao problema de “sucateamento” do metrô de BH. “Podem ver, não é a primeira vez que tal coisa acontece e nem será a última; os vagões já estão bem velhos e agastados; semana atrasada mesmo, ficamos um bom tempo parados, antes de aproximarmos da estação de Santa Inês. Tivemos todos de saltar sobre os dormentes, isso no meio de um calor infernal, e caminhar, a pé, um bom estirão, sobre os trilhos; um verdadeiro absurdo e falta de respeito com o usuário, não acham? Como eu estava ainda longe do meu trabalho, tive depois de tomar um ônibus pra completar o trajeto e cheguei no serviço super atrasada”. Uma outra mulher se queixava, mas com largo sorriso no rosto e brilho no olhar, da má sorte do dia: “justamente hoje que acordei pensando na vontade de andar de metrô, depois de tanto tempo, eu que ultimamente só tenho pegado ônibus ou carona em automóveis”. E pôs-se a rir bastante, logo em seguida. Até aquele senhor que aparentava embriaguez, a essa altura, já bem desperto, pôs-se, de repente, a filosofar com um vizinho de assento, acerca da vida e da morte, “a única certeza absoluta de todos nós”. Eu sentado agora num outro banco, conversava de forma descontraída e até com certa tranquilidade com um moço evangélico. Este, além de tecer lúcidas informações sobre a bondade de Deus e a condição pecadora do homem, afirmava que todos nós estamos sujeitos às surpresas e revezes da vida e temos de estar sempre preparados para enfrentá-los. Mas basta que saibamos, acima de tudo, temer e crer na força e soberania do Senhor, único ser supremo acima de tudo e de todos.

O fato é que já fazia mais de meia hora que permanecíamos parados no mesmo lugar, sem conseguirem sanar o bendito problema. Com isso, a apreensão associada à indignação geral, de alguma maneira, acabou por ceder lugar à descontração, ao bom humor, e eu imaginava que tal comportamento estaria, decerto, se repetindo nos outros vagões do veículo. Um verdadeiro turbilhão de conversas, pilhérias, risadas sonoras, passou a reinar soberano sobre o local, algo inédito e bastante insólito para mim, até então.

A verdade é que aquele incidente, antes aparentemente desagradável, terminou por resultar naquela espécie de magia ou encantamento real entre as pessoas que até então nem se conheciam e sequer se falavam, e que, há bons minutos atrás, se achavam tão reservadas e centradas apenas em si mesmas. Como se necessitássemos (incluindo-me também) de algo diferente, singular, extraordinário, para sairmos da rotina do cotidiano ou da mesmice chata de todos os dias, nem que fosse por breve espaço de tempo, capaz de despertar um fértil sentimento existente entre todos nós, que se remete ao lado mais agradável e aprazível da interação humana que, tantas vezes, se acha latente, escondido, principalmente nessa atmosfera tão rotineira e conturbada da grande metrópole. Veio a se formar, a partir dessa incrível experiência, um precioso elo coletivo entre nós mortais. Dessa forma, se constituem e se consolidam as relações humanas, ante os mistérios da vida, do mundo, da nossa sociedade.

E foi com esse mesmo estranho entusiasmo frenético, fervilhante, que, como era de se esperar, ao abrirem-se finalmente as portas do metrô, tivemos todos de saltar, com resignação, do veículo, com dificuldade, e caminhar a pé sobre os trilhos, mas ainda rindo muito e conversando alto acerca do ocorrido, a melhor forma de vencer e suportar os mais de duzentos metros que faltavam ainda para se chegar à próxima estação.

Wagner Andrade
Enviado por Wagner Andrade em 21/06/2019
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