MORTOS INSEPULTOS
É ilusão supor que enterramos nossos mortos queridos.
Eles serão cadáveres insepultos enquanto não colocarmos, também, certos cheiros a oitos palmos embaixo da terra.
Esses cheiros não são como os cheiros que nossos narizes captam ao longo dos dias.
São cheiros que entram e saem pelos vãos da alma numa catarse maluca, sem respeitar protocolos nem regras que normalmente obedecemos.
Esses cheiros rebeldes, descompassados, reinam num mundo à parte, expressando uma vitalidade juvenil que nunca joga a toalha.
Cheiros cravejados de suores vividos, embebidos em chãos percorridos, que esbravejam seus roteiros em uníssono.
Essa alucinada sinfonia leva suas plateias ao delírio, fazendo valer um malabarismo cênico apoteótico.
Cheiros robustos, mandatários dos seus passos, capazes de invadir sonhos e subconscientes sem pedir licença.
E vão cumprir seu mandato até que, num belo dia, nos damos conta de que aqueles mortos, por mais queridos que foram, devem ser enterrados de vez.
Por mais que teimarmos em mantê-los com o coração pulsando e sangue voando pelas veias nas nossas lembranças, nos nossos sonhos, nos nossos devaneios, temos que fazer valer seu atestado de óbito e os declararmos, definitivamente, mortos.
Assim, tanto nós quanto eles poderemos descansar em paz.
Definitivamente.