O pregador de botôes
Com o tempo, fui aprendendo a usar roupas e calçados confortáveis, e não coisas de moda e de grife. Nada que me aperte, que me faça sofrer algum desconforto ou contrariedade. Já bastam os apertos e incômodos que a vida, sem que se escolha, nos impõe.
Procuro as roupas e calçados bem folgados, duráveis, com preço honesto e aspecto que, se não chega a ser elegante, tem sua dignidade e estilo. Calças de sarja, um tecido firme e macio, pronto para a lida do dia a dia. Mas sem ser rude como o brim. Cintura de elástico e com cadarço, que me permitem um ajuste certo à minha magreza. Corte bastante largo, não prende nenhum movimento. A mesma coisa as camisetas, de malha bem complacente, com cores bem neutras e etiqueta que quer dizer preço condizente com o produto, e não com a marca. O tênis de lona, sem cadarço, mas com um elástico lateral que ajuda a acomodar meus pés cavos demais. O solado fino, resistente, sextavado, ao mesmo tempo proporciona boa firmeza e aderência ao caminhar, e consigo sentir o toque do chão onde piso. Ou, ainda, nos meses em que não faz tanto frio, uma sandália daquelas do homem do campo, de couro cru, mas bem macia, arejada, e com uma distinção simples. Posso assim vestido e calçado praticar meus exercícios matinais e, sem ter que trocar nada, ir para a sala de aula, o laboratório ou o compromisso burocrático. Além de tudo, é um trajar versátil, apesar de não de todo livre dos onipresentes preconceitos.
Pensam que é fácil encontrar coisas assim? Pois as roupas e calçados que me satisfazem vivem saindo de linha, os fabricantes deixam de fazê-los. Saem de moda, dizem. Para depois voltar a fabricá-los, após reengenharias que procuram sofisticá-los, torná-los mais apetecíveis aos sabores da moda, e, claro, com preços também modernizados. A qualidade, infelizmente, de praxe fica para segundo plano: o apelo visual e o preço aumentam, a durabilidade e o conforto diminuem. E, por essas e outras, muitas vezes peregrinei por muitas lojas, em cidades diferentes do Paraná e São Paulo, até encontrar o que procuro, quase sempre a última peça, a ponta de um antigo estoque.
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Depois de muitas andanças em busca dos produtos desaparecidos, localizei uma casa tradicional, perto do Largo da Batata, no bairro de Pinheiros em São Paulo, especializada em roupas e calçados justamente daqueles que atendem ao meu conservador feitio. Que satisfação foi descobrir que não sou o único que tem tais gostos, e que somos em número suficiente para justificarmos que ainda fabriquem os produtos que apreciamos. E que um lojista ainda os ofereça como a linha principal de mercadorias para uma clientela tão rarefeita.
Nas últimas vezes que lá estive, encontrei uma calça de sarja de um feitio que há muito não encontrava. Um primor de conforto, de estilo descontraído, dito casual, e preço justo. E com um curioso e persistente detalhe, que ao longo de vários anos não se alterou: os botões que fecham os bolsos traseiros estão cuidadosamente pregados em posição invertida. A convexidade do botão para fora, a concavidade, o adorno da borda, para dentro. Ao contrário do que deveria ser.
No início, estranhei aquilo que me pareceu um erro grosseiro do pregador de botões da confecção. Mas não me atrevi ao trabalho de repregá-los, avaliei que o esforço não valeria o resultado. Com o tempo, fui me acostumando. Parece que toda vez que uso as calças e percebo os botões ao contrário, reafirmo que estou com aquela calça tão especial, tão rara, autêntica, que custou tanto a ser encontrada. Os botões ao avesso passaram a fazer parte daquelas quase excêntricas calças. Um símbolo de seu desajuste.
Quem seria o trabalhador da confecção que pregara os botões ao contrário? Talvez alguém tão simples e inculto que nunca tivesse possuído nem visto na vida uma calça com botões? Talvez ainda um menino ou menina, em uma oficina clandestina, realizando trabalho infantil? Talvez uma criança filha de uma família indígena boliviana irregular neste nosso país de oportunidades para os vizinhos ainda mais pobres que nós?
E quem seria o conferente final, que deve ter percebido o equívoco, e que o absolvera, talvez por solidariedade e mesmo identificação com o camarada pregador de botões, talvez por perceber ali mais um detalhe a conferir originalidade e autenticidade àquela peça de vestuário à margem da moda e do glamour?
Fico assim inventando que os botões às avessas nas minhas calças representem tantas e tantas coisas. O conforto, a praticidade e o preço justo que se opõem à insana e autoritária crueldade da moda e do consumo. A oportunidade de trabalho e sobrevivência para os incultos marginalizados da aldeia global. A humana solidariedade do conferente, talvez ele mesmo egresso das fileiras de rudes migrantes do nordeste ou do altiplano. A quem um dia teria sido dada a missão de pregar botões, sem que ele nunca antes tivesse visto um, sem que conseguisse atinar qual o lado a ficar de fora.
Publicado no livro "perrengas princesinas" (2015).